Daniel Barros
Coluna
Daniel Barros

Médico psiquiatra e bacharel em Filosofia. Professor colaborador do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP

A volta da verdade

O cérebro divide a percepção do espaço visual para processar informações de forma mais eficiente  • kjpargeter/Freepik
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Vestindo um maiô preto diante de uma plateia empolgada, a apresentadora ameaça jogar óleo nas pessoas para testar se ele já está quente. Ou pede a um veterinário, que carrega um filhote de onça, que o aproxime de seu rosto para ver se será mordida. Constrange convidados, tripudia de entrevistados. É Marisa Maiô, personagem criada por inteligência artificial que comanda um programa de auditório praticamente indistinguível de uma atração real. E se uso praticamente aqui, é apenas por conta do exagero caricato das situações — pois as imagens, em si, impressionam pelo realismo.

A inundação de vídeos completamente gerados por IA que temos visto nas últimas semanas escancara, de vez, algo que já vem sendo dito há bastante tempo: não se pode acreditar no que se vê na internet. Parece óbvio — e quase todo mundo concorda —, mas, na prática, quando vemos algo criado especificamente para nossa bolha, que confirma nossos pontos de vista, reforça nosso senso de identidade e pertencimento, esquecemos imediatamente desse ceticismo fundamental e saltamos direto para o “Viu só? Eu já sabia”. É instintivo, quase inevitável.

Vale lembrar que o cérebro humano tem muito pouco tempo de convívio com os meios de comunicação de massa — e menos tempo ainda com a internet e as redes sociais. Nossa espécie só conseguiu sobreviver acreditando nas mensagens que recebia dos semelhantes, fosse sobre onde havia comida ou onde havia perigo. Sempre houve os aproveitadores, claro — que, cientes dessa tendência, a utilizavam para obter vantagem ao nos enganar. Mas isso era feito em nível individual, não na escala industrial que é possível hoje.

No mundo moderno, a verdade, que sempre esteve ameaçada de morte, encontrou um fim ainda mais melancólico do que a extinção: ela se tornou irrelevante. O convívio da humanidade em uma realidade única compartilhada, na qual todos olhamos o mesmo fenômeno e enxergamos a mesma coisa, foi corroído pela multiplicação de narrativas — a ponto de se tornar difícil saber se há uma versão correta, e fácil escolher uma que agrade.

Paradoxalmente, a sofisticação e o aperfeiçoamento técnico das ferramentas de falsificação da realidade podem ser a salvação da verdade — o resgate de sua relevância. Pois uma coisa é sabermos, em teoria, que não podemos confiar em muito do que vemos na internet. Outra é nos darmos conta de que absolutamente nada é confiável. Não teremos condições individuais de verificar a autenticidade ou veracidade de cada uma das mensagens recebidas, vídeos assistidos, áudios compartilhados. Com certeza ainda haverá quem prefira viver em suas bolhas, no conforto das crenças reasseguradas por conteúdo feito por encomenda. Mas o cérebro humano é muito sensível à incerteza — e aposto que a maioria de nós ficará aflita se não tiver ao menos uma base sólida de informação. E, na busca por encontrar meios de separar realidade e ficção, vamos nos deparar com a checagem de fatos, pesquisa com fontes, trabalho de campo.

Ou seja, o jornalismo profissional poderá ser ressuscitado por quem o havia ameaçado de morte. Quem viver, verá.