OPINIÃO
O sistema de atenção à saúde privado no Brasil
Para entender a assistência a saúde privada é necessário descrever seu modelo organizacional. E ela está estruturada em muitos componentes bastante independentes o que prejudica seu funcionamento. Ela é muito fracionada. Neste artigo, se discutira assistência medica. A assistência odontológica que tem um modelo semelhante, devera ficar para um próximo artigo.
Mas ela cobre cerca de 25% da população, com grande variabilidade no Brasil. A cobertura no sudeste, é bastante mais elevada, algumas cidades mais industrializadas chegam a ter uma cobertura de 70% da população e em contrapartida na região norte as coberturas ficam em 10%. Na media, 25% no país. É importante entender que a cobertura depende portanto da atividade econômica.
Todos os modelos têm mais ou menos o mesmo modelo – credenciam serviços de prestação de ações medicas que são pagos por prestação de serviços – pagamento por ato medico realizado (fee for service) – e recebem de seus clientes um valor fixo mensal corrigido anualmente. Algumas operadoras cobram uma coparticipação do usuário, que deve funcionar como um elemento regulador do uso dos serviços. Não é um cofinanciamento.
Agora vamos ver como se estrutura a cadeia de prestação de serviços:
Importante destacar os clientes finais – os 50 milhões de brasileiros com acesso aos serviços privados. Eles buscam os serviços quando acham que tem um problema de saúde e são atendidos na rede credenciada de seu plano de saúde. Aqui nasce um dos problemas da estrutura da prestação de serviços que é a chamada sinistralidade – que é o nome técnico da utilização de serviços de saúde. Quando você vai ser assistido – você gera um sinistro, isso vem da ideia de seguro, que é uma das formas de pensar o modelo de atenção aqui desenhado e que é muito utilizado no mundo. Existe uma expectativa de utilização de serviços de saúde e seu nome é sinistralidade. A inflação media da economia roda em torno de 4%, mas a correção das prestações tem sido em torno de 20%! Por que? Devido ao sobre uso, a demanda muito elevada e não regulada pelas operadoras, pois os prestadores e os clientes finais não estão preocupados com as consequências de sua demanda. Eventualmente, fora do regime de urgência para serem submetidos a procedimentos mais complexos é necessária uma pré-aprovação.
Mas essas ferramentas não tem sido suficientes para diminuir a sinistralidade. De qualquer forma para ilustrar – recentemente a ANS publicou a relação de uso de alguns serviços – a porcentagem de internações hospitalares é de 18,9% em 2023 (para comparar a do SUS é de cerca de 8%, a do UK de cerca de 10%), a relação de uso dos exames de Ressonância Magnética Nuclear foi de 185 exames por 1000 beneficiários/ano, Na Alemanha não passa de 20.
Agora o cliente comprador de serviços, quem compra o plano de saúde e o que ele quer mesmo:
- Plano Coletivo Empresarial – 70% dos planos estão nesta categoria. O empregador compra o plano de saúde e busca oferecer um beneficio ao trabalhador que valoriza muito o plano de saúde. Mas o empregador não está preocupado com a saúde e sim com oferecer um beneficio ao empregado. Uma demonstração cabal disso é que não existe integração entre os processos de atenção das operadoras e os burocráticos planos de assistência a saúde do trabalhador realizados apenas para cumprir normas burocráticas do Ministério do Trabalho. Câncer de mama ou de próstata não interessa para o empregador, assim como não interessa para a operadora os acidentes de trabalho ou doenças profissionais. Todos perdem! Se a preocupação fosse saúde publica, os dois serviços deveriam estar integrados.
- Plano Individual ou familiar – 18% dos planos de saúde são comprados por cidadãos e que a maioria das operadoras não estão mais vendendo, principalmente por que estes são de fato os únicos planos regulados pela Agencia Nacional de Saúde Suplementar – ANS, que em particular regula a correção dos preços anualmente e o resumo é mais ou menos esse: inflação 4%, sinistralidade 20% e correção aceita pela ANS 9%. Mas de novo – o consumo de serviços é relativamente livre, mas a operadora não acompanha o que acontece com seu cliente, é apenas uma relação de consumo!
- Coletivo por adesão – 12%. Esta foi uma modalidade inventada pelo empresário fundador da Qualicorp para fugir da regra de controle da correção da mensalidade da ANS – a partir de uma pessoa jurídica – um CNPJ, pode ser contratado para um numero pequeno de usuários um plano coletivo por adesão cuja mensalidade é pactuada entre a pessoa jurídica e a operadora contratada. E o resultado tem sido desastroso para os contratantes, inclusive com suspensões da prestação de serviços quando a utilização de serviços é muito alta. Além de ter os problemas do fracionamento da assistência como o coletivo empresarial.
Os planos individuais e os coletivos por adesão têm como objetivo ter acesso a serviços de saúde sem muito controle e o resultado sempre é uma explosão de custos e medicalização.
Análise das operadoras de planos de saúde. Esse ente que se situa entre o consumidor de serviços de saúde e o prestador de serviços de saúde (hospitais, clinicas, médicos e outros profissionais que se credenciam junto as operadoras de saúde) são basicamente cinco tipos de operadoras diferentes:
- Medicina de Grupo – detém 40% do mercado, empresas que vendem assistência prestada por uma rede de serviços credenciados para entregar serviços a seus compradores e que trabalham com os planos coletivos empresariais ou por adesão. Nesta modalidade nos últimos anos existe uma forte tendência a verticalização dos serviços – ter seus próprios hospitais e serviços assistenciais para poder controlar melhor o uso dos serviços e controlar a explosão dos custos. Passam a operar nas duas pontas – demanda e oferta.
- Cooperativas Medicas – detêm 37% do mercado e atendem a todas as modalidades e tem cerca de 340 unidades no Brasil, as singulares, com base nas cidades na maior parte das vezes. Tem regras muito semelhantes mas seu funcionamento é diferente em cada singular. E se apresentam como uma medicina de grupo ética – pois são de médicos. O funcionamento é semelhante ao das medicinas de grupo e também com uma tendência a verticalização, quando tem escala para absorver serviços mais complexos.
- Seguradoras – detém 14% do mercado e não mais trabalham com planos individuais e são operadas por bancos ou outros entes do mercado financeiro. No geral não são diferentes na operação das duas formas acima descrita e ate tem buscado caminhos para a verticalização. São grandes players no geral e detém importante fatia do mercado.
- Autogestão – detém 8% do mercado e trabalham exclusivamente com planos coletivos empresariais, mas com um modelo muito próprio – são empresas, a maior parte de origem publica, que montam um processo assistencial para os trabalhadores da própria empresa e por isso são ditas autogestão. Tem um funcionamento no geral menos conflituoso e tem na gestão os beneficiários do plano. A mais antiga e uma das maiores autogestão do país é a CASSI do Banco do Brasil.
- Filantropia – detém um pouco mais de 1% do mercado. São planos de saúde individuais e empresariais operados por Santas Casas e por isso filantrópicos. São residuais nesse mercado, mas são semelhantes na operação.
Uma tendência que tem sido observado no mercado, é a verticalização, ou seja as operadoras resolveram ter rede própria para operar nas duas pontas – da receita e da despesa ou demanda e oferta. E também para poder enfrentar as grandes redes de hospitais como a D’Or (que além de ser a maior rede de hospitais do país, tem também uma operadora de saúde), e as redes de laboratórios e de exames de imagens – Fleury, Dasa. O mercado se movimenta em busca de preservar sua capacidade de prestar serviços e manter sua lucratividade.
Outra tendência é buscar tornar o usuário gestor de seu cuidado em relação aos custos através do mecanismo de copagamento dos atos médicos. Essa é uma tendência mundial e com bons resultados.
E finalmente a tendência sempre presente de concentrar, os grandes compram os sobreviventes. O setor tem passado por um processo continuo de redução do numero de operadoras.
Para buscar encerrar o artigo e deixar ainda muitas questões sem resposta, nessa apresentação ainda falta alocar os produtores de insumos consumidos nos atos médicos que tem múltiplos interesses e estão sobretudo preocupados em garantir que o que produzem seja consumido e aí existe uma grande pressão nos preços e em garantir que os clientes queiram consumir o que produzem e onde o estado tem um importante papel regulador. A decisão de avaliar e incorporar tecnologias é um dos maiores problemas do sistema atualmente. E sua incapacidade de produzir efeitos resulta na judicialização.
Mas é necessário registrar que o modelo privado de atenção está voltado sempre para garantir consumo de serviços, produtos e não saúde. Isto que Foucault chama de medicalização – confundir consumo de produtos e serviços com saúde. Não existe uma preocupação com promoção da saúde e sim com mais exames, mais internações, mais consumo de tecnologias cada vez mais novas, independente do resultado final. Fundamental é o dinheiro circular.
Os serviços de saúde de base universal dos países europeus e mesmo nosso SUS mostram como deve se estruturar um sistema de atenção voltado para garantir não consumo mas uma assistência a saúde mais efetiva. Voltaremos a esse assunto.