O impacto do uso de limiares de custo-efetividade na jornada do paciente no SUS

Em linhas gerais, trata-se de uma recomendação que institui uma régua, com valores que serão considerados limites para a incorporação de novos tratamentos no SUS. O documento recomenda, entre outros pontos, a adoção de valores de referência de cerca de 40 mil reais por anos de vida ajustados pela qualidade (QALY). Em alguns casos, como doenças raras que apresentam redução importante de sobrevida ajustada pela qualidade, esse valor pode ser ajustado em até 3 vezes, algo em torno de R$ 120 mil por ano.
O assunto é complexo e necessário para a saúde brasileira, uma vez que é preciso ter um controle sobre os recursos destinados às novas tecnologias de saúde ao mesmo tempo que deixar pacientes de fora do sistema fere o direito constitucional. A discussão requer um exercício constante de análise dos possíveis cenários e, principalmente, escuta para entender e ajustar as demandas existentes. É fundamental que haja espaço para a participação de todos os agentes envolvidos na jornada do paciente, especialmente o próprio paciente, seus familiares e cuidadores.
Quem lida com doenças raras tem ciência de que esses valores sugeridos podem ser muito maiores e, por isso, essa proposta é particularmente nociva. Com o avanço da medicina, os tratamentos de precisão são o futuro muito próximo e geram esperança para muitas pessoas. Documentos como o recomendado pela CONITEC representam um grande revés para os milhares de brasileiros que dependem do SUS.
Para ilustrar o impacto do limiar proposto, a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma) e a Moka Consultoria realizaram um estudo, publicado no ano passado, que analisou o histórico de decisões da CONITEC entre janeiro de 2015 a junho de 2022. O levantamento ressaltou a alta complexidade na definição do limiar de custo-efetividade e evidenciou que ele não pode ser utilizado como parâmetro excludente e fundamental. Caso fosse aplicado nas decisões levantadas pelo estudo, o limiar negaria o acesso ao tratamento de mais de 260 mil vidas.
Desde o início das discussões, a Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras (Febrararas) tem se posicionado contrária à medida, devido à diversas inconsistências nos parâmetros apresentados pela CONITEC e pela falta de transparência do processo. Esses pontos foram apontados não somente por nós, mas também por outras Associações, instituições, pacientes e especialistas envolvidos no processo de audiência pública e consulta pública. Houve um consenso de que apesar dos esforços, poucos argumentos que poderiam enriquecer a proposta final foram considerados pela comissão.
É compreensível a apreensão diante da chegada de novas tecnologias, mas precisamos que o Governo olhe para esses avanços não como um gasto, mas sim como um investimento para que mais pessoas consigam viver com mais qualidade e com suas necessidades atendidas de maneira mais eficiente.
Ao longo desse período apontamos dados que demonstram que, em países cujos modelos são semelhantes ao SUS, o que gerou maior eficiência foi a modernização da gestão e não o veto a novos tratamentos. Também ressaltamos que esse modelo baseado no PIB foi deixado de lado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) há cerca de cinco anos, justamente porque não consta com a especificidade necessária e pode levar à uma decisão equivocada sobre a utilização dos recursos.
Além disso, em breve, o Supremo Tribunal Federal (STF) deverá decidir sobre a definição de critérios excepcionais em que o Estado deve fornecer medicamentos de alto custo. O julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 566471, que está suspenso desde 2020 e previsto para ser retomado em 18 de maio, já conta com a decisão no mérito dos ministros, que avalia que o Estado não é obrigado a fornecer medicamentos de alto custo solicitados judicialmente, quando não incluídos no Programa de Medicamentos de Dispensação em Caráter Excepcional ou em Política Nacional de Medicamentos, no Sistema Único de Saúde.
A Corte deve prosseguir com o julgamento, agora, para fixação da repercussão geral da decisão. Dessa forma, milhões de pacientes brasileiros com doenças raras correm risco de não conseguirem o tratamento adequado. Como bem pontuou a Ministra Ellen Gracie em seu parecer, o acolhimento irrestrito à opinião da CONITEC considerada para essas decisões resulta na violação do direito fundamental de cerca de 13 milhões de brasileiros à saúde e à vida que sofrem com doenças raras. Isso porque, a CONITEC utiliza, de forma reiterada e equivocada - muitas vezes subestimando a eficácia e efetividade das tecnologias e medicamentos avaliados - o mesmo critério de custo-efetividade aplicado na avaliação de doenças comuns para as doenças raras.
Esse é um erro grave e que deve ser reconsiderado e não levar adiante decisões tomadas apenas com enfoque no “fator orçamento”. Ao todo, estima-se que 71% da população brasileira dependa do SUS para os cuidados com a saúde. Portanto, apenas 29% que têm acesso à saúde suplementar podem vir a se beneficiar de novas tecnologias. Por consequência, uma barreira ao acesso e à redução de desigualdades.
Com um novo Ministério da Saúde, liderado pela ministra Nísia Trindade – que se mostrou impecável ao longo de toda sua trajetória profissional, especialmente à frente da Fiocruz -, acreditamos que seja a oportunidade para retomar a conversa acerca dos limiares de custo-efetividade e revisar os parâmetros utilizados na recomendação da CONITEC. Durante a transição governamental, o Grupo Técnico de Saúde formado pelo Gabinete apontou para a necessidade de um departamento de enfrentamento às doenças raras e ao câncer. Além disso, em seu discurso de posse, a nova ministra da Saúde indicou que o novo governo está aberto a rever decisões passadas para otimizar os processos e recursos destinados ao SUS.
Este é um sinal de esperança que demonstra que, além da capacidade técnica dos que compõem o novo Ministério da Saúde, há o espaço para o tão indispensável diálogo. E esse fator é o mais importante para impulsionar-nos rumo ao aperfeiçoamento dos sistemas de saúde no Brasil, tornando-o cada vez mais justo e acessível.
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