Análise: Donald Trump tem o poder de revogar a cidadania americana?
Trump disse a repórteres que consideraria a possibilidade de deportar Elon Musk. Ameaçou prender Zohran Mamdani, candidato a prefeito em Nova York. E publicou nas redes sociais que está seriamente pensando em revogar a cidadania da comediante Rosie O’Donnell

O que o homem mais rico do mundo, um candidato ao cargo mais alto de Nova York e uma comediante que já foi uma das apresentadores de um programa de entrevistas famoso têm em comum?
Nas últimas semanas, o presidente Donald Trump fez comentários insinuando que a cidadania americana dessas pessoas poderia estar em risco.
Trump disse a repórteres que consideraria a possibilidade de deportar Elon Musk. Ameaçou prender Zohran Mamdani, candidato a prefeito em Nova York. E publicou nas redes sociais que está seriamente pensando em revogar a cidadania de Rosie O’Donnell.
Essas declarações vêm à tona enquanto sua administração também compartilha planos mais amplos para priorizar a desnaturalização — o processo legal usado para retirar a cidadania de indivíduos naturalizados.
Mas afinal, o que Trump disse exatamente, quais as chances reais de isso acontecer e qual o contexto mais amplo por trás dessas declarações?
Confira a seguir algumas perguntas e respostas essenciais sobre o assunto.
O que Trump disse?
Ele fez uma declaração semelhante quando questionado por outro repórter sobre o que faria se Zohran Mamdani desobedecesse o Serviço de Imigração e Alfândega dos EUA na cidade de Nova York.
“Teremos que prendê-lo. Veja, não precisamos de um comunista neste país, mas se tivermos um, vou ficar de olho nele muito de perto em nome da nação”, disse Trump.
O presidente acrescentou: “Muita gente está dizendo que ele está aqui ilegalmente. Vamos investigar tudo.” Não há evidências de que Mamdani esteja no país ilegalmente, embora um parlamentar conservador tenha pedido uma investigação sobre sua cidadania.
Musk e Mamdani são ambos cidadãos americanos naturalizados. Musk nasceu em Pretória, África do Sul, e tornou-se cidadão dos EUA em 2002, segundo suas biografias. Mamdani nasceu em Kampala, Uganda, e se naturalizou americano em 2018.
“Estou considerando seriamente tirar a cidadania dela”, escreveu Trump, chamando a atriz nascida nos EUA de “ameaça à humanidade”.
Foi a mais recente troca de farpas na longa rivalidade entre Trump e O’Donnell, que frequentemente acontece nas redes sociais. Trump não explicou o que motivou sua última publicação.
O’Donnell, que se mudou para a Irlanda com seu filho de 12 anos em janeiro, havia criticado recentemente a forma como a administração de Trump lidou com as enchentes devastadoras no Texas. Ela disse, no início deste ano, que estava no processo de obter a cidadania irlandesa, pois tem avós irlandeses.
Trump pode revogar a cidadania americana?
A lei dos EUA usada para revogar a cidadania de americanos naturalizados estabelece dois motivos gerais para esses casos:
- Obtenção ilegal da naturalização
- Ocultação de um fato relevante ou declaração falsa intencional
Durante anos, essa lei foi usada principalmente para combater criminosos de guerra, incluindo ex-nazistas que mentiram para se tornar cidadãos americanos.
Mas a desnaturalização é rara. Para o governo, acusar alguém de ocultar um fato relevante na aplicação ou de ter se tornado cidadão ilegalmente é apenas o começo.
“Isso ainda precisa ser um processo que ocorre perante um tribunal distrital federal e… o governo tem o ônus de provar isso por meio de evidências claras e convincentes”, afirma Muzaffar Chishti, pesquisador sênior do Instituto de Política Migratória, uma entidade apartidária.
E vencer esse caso na justiça pode ser difícil.
“Trump não pode desnaturalizar Musk ou Mamdani. Apenas um tribunal pode. E existe um processo, com um padrão muito alto para isso”, explica Chishti.
Como Musk, Mamdani e O'Donnell responderam?
Elon Musk
Em resposta a um vídeo com as declarações de Trump compartilhado no X, Musk disse: “É muito tentador responder à altura. Muito, muito tentador. Mas vou me conter por enquanto.” Musk não respondeu a um pedido de comentário da CNN sobre os comentários de Trump. No passado, o bilionário negou as acusações de que teria começado sua carreira trabalhando ilegalmente nos EUA.
Zoran Mamdani
O candidato à prefeitura de Nova York repudiou os comentários do presidente em uma entrevista coletiva no dia seguinte: “Ontem, Donald Trump disse que eu deveria ser preso, que eu deveria ser deportado, que eu deveria ser desnaturalizado, e falou essas coisas sobre mim, alguém que pode ser o primeiro prefeito imigrante desta cidade em gerações, alguém que também seria o primeiro prefeito muçulmano e o primeiro de origem sul-asiática na história da cidade. E ele disse essas coisas não tanto por causa de quem eu sou, de onde eu venho, de como pareço ou de como falo. Mas mais porque ele quer desviar a atenção do que eu defendo.”
Rosie O'Donnell
A ex-coapresentadora do “The View”, um famoso programa de entrevistas dos EUA, rebateu no Instagram, comparando Trump a um personagem notoriamente mal-humorado e cruel de “Game of Thrones”: “Quer revogar minha cidadania? Vá em frente e tente, rei Joffrey com bronzeado de spray laranja. Eu não sou sua para silenciar. Nunca fui.”
O'Donnell é nascida nos EUA. A lei se aplica à ela?
O’Donnell é cidadã dos EUA e nasceu em Long Island, Nova York.
Especialistas afirmam que um presidente não pode, sozinho, retirar a cidadania de alguém que, como O’Donnell, que nasceu nos EUA.
A lei estabelece uma série de situações em que uma pessoa pode perder a cidadania se realizar certas ações voluntariamente “com a intenção de renunciar à nacionalidade dos Estados Unidos”.
“De acordo com a lei, não existe nenhum mecanismo para um cidadão americano nato perder sua cidadania, exceto pela renúncia (abrir mão voluntariamente) ou pela morte”, explica Hoppock. “Mesmo que o Congresso criasse uma lei para tornar isso possível, a Suprema Corte já decidiu que tal lei seria inconstitucional.”
Qual é o contexto mais amplo por trás dessas declarações?
Musk, Mamdani e O’Donnell são figuras públicas de destaque, cujas diferenças políticas em relação ao presidente são bem conhecidas. Mas os comentários de Trump sobre a cidadania deles não acontecem isoladamente.
No passado recente, os casos de desnaturalização eram raros, com uma média de apenas 11 processos por ano entre 1990 e 2017, segundo o Centro de Recursos do Imigrante Legal. O número de processos aumentou após o departamento de Justiça abrir um escritório focado em desnaturalização durante o primeiro mandato de Trump.
Esse escritório foi silenciosamente fechado durante a administração Biden, mas o segundo governo Trump não esconde o desejo de aumentar a desnaturalização como parte de suas ações mais duras contra a imigração. Stephen Miller prometeu que esse esforço renovado será “turbinado”.
Além disso, um memorando emitido pelo departamento de Justiça no mês passado orientou os advogados da divisão civil a priorizarem a desnaturalização “em todos os casos permitidos por lei”. O memorando também sugere que os escritórios dos procuradores dos EUA pelo país inteiro devem sinalizar casos onde possam iniciar processos de desnaturalização.
O que o governo Trump irá fazer?
Não está claro se a administração Trump tomará medidas a partir dos comentários do presidente sobre a cidadania de Musk, Mamdani ou O’Donnell.
“As palavras de Trump nem sempre indicam o que ele realmente vai fazer. É meio difícil saber como interpretar isso”, diz Matthew Hoppock, advogado de imigração do Kansas que já representou clientes em processos de desnaturalização.
“Não sei se devemos levar ele ao pé da letra, porque muitos desses comentários não são declarações planejadas; são respostas a perguntas de jornalistas”, acrescenta.
E no passado, quando a administração Trump anunciou planos para aumentar a desnaturalização durante seu primeiro mandato, o número de casos que os responsáveis acabaram realmente perseguindo foi menor do que o prometido.
Durante o primeiro governo Trump, o Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA anunciou que encaminharia 1.600 casos de desnaturalização ao departamento de Justiça.
No final, pouco mais de 100 casos de desnaturalização foram abertos durante o primeiro mandato de Trump, segundo o departamento de Justiça.
O que mudou na desnaturalização desde o segundo mandato de Trump?
No início deste mês, o porta-voz do departamento de Justiça, Chad Gilmartin, afirmou que cinco casos de desnaturalização foram abertos desde o retorno de Trump ao poder. “VEM MAIS POR AÍ”, escreveu ele no X em uma série de posts que incluíam uma página do memorando com as diretrizes atualizadas do departamento de Justiça para essa prática. A publicação de Gilmartin não trouxe mais detalhes sobre os casos de desnaturalização abertos.
Um comunicado à imprensa do departamento, divulgado em junho, descreve a recente desnaturalização de um ex-soldado do Exército dos EUA que se declarou culpado em 2014 de posse de pornografia infantil.
O memorando recente do Departamento de Justiça destaca que os advogados devem direcionar o trabalho de desnaturalização para quem represente “um potencial perigo à segurança nacional”. Também aponta que pessoas que cometeram crimes violentos, são membros ou associados a gangues e cartéis de drogas, ou que tenham cometido fraudes, devem ser priorizadas.
Alguns especialistas em direito imigratório expressaram preocupação de que o memorando possa levar a administração a buscar retroativamente falhas no processo de naturalização de adversários políticos percebidos.
“A politização dos direitos de cidadania é algo que realmente me preocupa”, disse Cassandra Burke Robertson, professora de direito da Case Western Reserve University, à CNN.
O departamento de Justiça disse à CNN, em uma declaração no início deste mês, que os processos de desnaturalização “serão realizados apenas quando permitidos por lei e apoiados por evidências contra indivíduos que obtiveram a naturalização de forma ilegal ou prestaram informações falsas durante o processo.”
Por que os comentários de Trump sobre Musk, Mamdani e O’Donnell importam?
Chishti, do Instituto de Políticas Migratórias, diz que os comentários de Trump sobre Musk e Mamdani representam uma mudança notável na forma como a desnacionalização está sendo discutida.
“Este é um capítulo totalmente diferente de perseguição aos seus inimigos políticos, algo que realmente não tem precedentes”, afirma ele. “Não é que nunca tivemos casos de desnacionalização antes. Mas o animus político nunca havia surgido de forma tão clara em nosso processo. Isso parece claramente motivado por razões políticas. E isso é lamentável.”
Hoppock diz que os comentários recentes do presidente sobre O’Donnell parecem seguir uma linha semelhante.
“É um sinal extremamente preocupante vindo de um presidente que parece não ter nenhuma consideração pela Constituição”, escreveu ele em um e-mail.
Quando questionada para responder, a porta-voz da Casa Branca, Abigail Jackson, não abordou as alegações específicas feitas por Chishti e Hoppock, mas questionou a expertise deles e ressaltou que eles já fizeram doações no passado para democratas.
Esses comentários podem ter um efeito mais amplo?
Isoladamente, Chishti disse que os comentários de Trump sobre Musk e Mamdani podem não ter muito impacto. Mas, quando combinados com a decisão do governo de revogar vistos e green cards de pessoas com base em opiniões políticas e política externa, ele afirma que o efeito inibidor potencial fica claro.
“As pessoas, mesmo os cidadãos naturalizados, vão começar a ter cuidado com tudo o que dizem. Porque... mesmo o sucesso do caso não é o que importa. O que importa é o fato de que... exercer o seu direito à Primeira Emenda de expressar sua opinião pode te levar a um processo de desnaturalização. Isso é muito preocupante,” diz Chishti.
