Meio milhão de mortes por Covid carrega marca da desigualdade do Brasil
Indicadores mostram o peso da injustiça social e econômica diante da Covid-19; pesquisadores apontam para risco de impacto duradouro da pandemia no país
O número de meio milhão de mortos pela Covid-19 no Brasil tem o carimbo da desigualdade social e econômica. Mesmo que a pandemia não possa ser responsabilizada por um problema histórico do país, a relação entre doença e desigualdade, afirmam pesquisadores, ajuda a compreender os caminhos do vírus e suas consequências, além de colocar em risco o futuro de uma geração de brasileiros.
A marca de 500 mil mortes foi ultrapassada neste sábado.
Nesse cenário, entender como a fragilidade social e econômica acentua o risco sanitário é enxergar que pobres são mais afetados pela crise do que ricos, em diversos aspectos. Sofrem mais com ela. E levam mais tempo para se recuperar.
“Historicamente, momentos de pandemia ou de epidemia expõem e aprofundam as desigualdades de uma sociedade”, diz a professora Marcia de Castro, do Departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard.
Essa não é uma realidade exclusiva do Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, a economia mais forte do planeta, há uma proporção maior de casos e mortes entre a população negra, latina e indígena. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) calcula que, ao se ajustar as estatísticas por idade, índios, negros e latinos têm de duas a três vezes mais chance de morrer de Covid-19 do que brancos nos EUA.
Por aqui, o contexto da desigualdade inclui, além da questão racial, problemas específicos como condições informais de trabalho, a existência de favelas com estrutura de moradia precária, um profundo déficit educacional, entre outros. A maior comorbidade é viver num país com tantas iniquidades.
Foi essa a conclusão a que chegou uma pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), publicada em abril na revista Lancet. “Quando a pandemia surgiu, a questão etária parecia determinar um perfil claro de risco. Com o tempo, fomos percebendo um padrão segundo o qual a doença, em vez de se espalhar por lugares com estrutura etária mais avançada, passou a se tornar um problema maior em locais socialmente vulneráveis, independentemente da presença de pessoas mais velhas”, afirma Rudi Rocha, pesquisador-chefe do IEPS e professor associado da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP).
Falar em desigualdade social é falar de uma série de contextos específicos. É algo que o pagamento de um auxílio emergencial, por exemplo, pode amenizar, mas não tem o potencial de resolver. A ajuda governamental evitou que pessoas morressem de fome. Mas desigualdades como a de renda e de acesso a serviços públicos cresceram no período da pandemia.
Professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, Maria Amélia de Sousa Mascena Veras refere-se ao que chama de “camadas de desigualdade”. Marcia de Castro também adota esta linha, lembrando que é preciso considerar aspectos como renda, acesso ao trabalho, acesso à saúde, raça e moradia. São fatores, ela explica, que dialogam entre si.
“O que nós pesquisadores estamos buscando é montar um grande quebra-cabeça. Diferentes metodologias vão sendo utilizadas para formar pequenas peças que vão eventualmente permitir a compreensão mais ampla do momento e entender o que pode ser feito.” Nesta reportagem, trazemos algumas dessas pesquisas e como elas refletem e explicam as injustiças sociais no país.
Renda dos mais pobres caiu mais que a dos ricos
Uma pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) concluiu que, durante 2020, 70 milhões de pessoas cruzaram a linha da pobreza em todo o mundo. No caso específico da América Latina, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) fala em 22 milhões de pessoas a mais que podem ser consideradas pobres.
No Brasil, aconteceu movimento inverso. A população pobre diminuiu 23,7% de 2019 a agosto de 2020. Isso foi consequência direta do auxílio emergencial pago pelo governo federal. O maior efeito do auxílio foi garantir a sobrevivência, na crise, de pessoas muito vulneráveis.
Segundo levantamento do Observatório das Metrópoles, centro de estudos vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações que reúne pesquisadores de diferentes universidades brasileiras, o auxílio federal evitou que 23 milhões de pessoas caíssem na pobreza em áreas metropolitanas. Isso, no entanto, não foi suficiente para superar desigualdades que se aprofundaram.
“O auxílio emergencial foi e é fundamental, mas ele não resolve um problema estrutural. Como diz o próprio nome, ele serve para que as pessoas consigam sobreviver em um momento de emergência como o da pandemia”, explica Marcelo Ribeiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do Observatório.
“O auxílio ajuda, mas não de forma sustentável”, concorda Marcelo Neri, diretor da FGV Social. “Como vimos no final do ano passado e no começo deste ano, quando o auxílio é suspenso, os números regridem rapidamente”, completa.
Neri ressalta a necessidade de se olhar para outros indicadores, como aqueles que revelam mudanças na renda da população. Entre o primeiro trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2021, a renda caiu em média 10,9% no Brasil. Acrescente a isso o fator de desigualdade brasileira e constata-se que, entre a metade mais pobre da população, a queda foi de 20,8%.
Com uma metodologia diferente no que diz respeito às faixas da população, o Observatório da Metrópole também identificou o aumento da desigualdade de renda. “Os dados mostram que os 10% mais ricos perderam 6,9% de rendimentos e os 40% mais pobres perderam 34,2%”, afirma Ribeiro.
O índice de Gini, que mede o grau de concentração de renda em determinado grupo e aponta a diferença nos rendimentos de mais ricos e mais pobres, confirma essa realidade. O índice é medido de 0 a 1: quanto mais próximo de 1, maior a desigualdade. No primeiro trimestre de 2021, ele chegou a 0,674, contra 0,642 no primeiro trimestre de 2020 e 0,610 no primeiro trimestre de 2015. “Parece um crescimento pequeno, mas para o índice de Gini é um salto enorme, que nos leva ao maior nível da história”, contextualiza Marcelo Neri.
Geração Covid e o impacto futuro
A desigualdade se revela em outros índices. O Instituto de Pesquisas Avançadas (Ipea) divulgou recentemente números que mostram que, quando vista por meio do impacto em faixas de renda distintas, a inflação exerceu pressão maior entre as famílias mais pobres (renda inferior a R$ 1.650,50): a variação dos preços de abril para maio passou de 0,45% para 0,92%, enquanto para os mais ricos (renda acima de R$ 16.509,66) foi de 0,23% para 0,49%.
A pesquisa Índice da Qualidade do Trabalho, também do Ipea, propõe que em períodos de crise, há maior perda de trabalho entre os menos escolarizados e com menor grau de experiência.
É por isso que, ainda que os números relativos à pandemia sejam retratos de um momento específico, é importante ter em mente consequências futuras. “De alguma forma, eles mostram sementes sendo plantadas para um aumento ainda maior de desigualdade no futuro”, diz Marcelo Neri, referindo-se à desigualdade no acesso ao trabalho, que ele relaciona à desigualdade também na educação.
“Quando consideramos a faixa de 6 a 15 anos, o que vimos em 2020 foi, nas escolas públicas, um tempo médio de aulas de 2 horas e 18 minutos. Nas escolas particulares, esse tempo foi de 3 horas e 6 minutos”, diz o presidente da FGV Social. Além da diferença em si, houve uma inversão do movimento dos últimos anos, quando havia diminuído a diferença entre o público e o privado no número de alunos matriculados e no tempo passado na escola. E que os alunos mais pobres são 633% mais afetados pela falta de oferta de atividades escolares que os alunos mais ricos.
Durante a pandemia, para os mais pobres, o acesso à educação foi prejudicado também pela falta de acesso à internet ou pela necessidade de alguns alunos ajudarem no sustento de casa. “O ponto é que a educação é fundamental tanto para a produtividade quanto para diminuir a desigualdade lá na frente”, comenta Neri.
Ao mesmo tempo, os jovens vêm enfrentando outro desafio, que é a inserção no mercado de trabalho. “Durante a pandemia, realizar a ascensão trabalhista foi muito difícil e essa perda não é recuperada rapidamente.” Por conta disso, ele fala em uma Geração Covid, marcada pelo que se define como “efeito cicatriz”, ou seja, de caráter permanente. “Para os mais novos, pouca ênfase na educação; para os jovens, desafios educacionais e trabalhistas.”
Raça e moradia
Para pesquisadores, a questão racial também não pode ser deixada de lado – e está profundamente inserida em qualquer análise a respeito da desigualdade social brasileira. Números de 2019 do IBGE mostram que 75% da população mais pobre no país é composta de negros e pardos.
Foi esse o ponto de partida para a pesquisa realizada na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, publicada no International Journal of Epidemology, da Universidade de Oxford.
A conclusão, a partir dos números da Covid-19 na cidade de São Paulo, é de que a possibilidade de uma pessoa parda morrer da doença é 45% maior do que a de uma pessoa branca; para uma pessoa negra, o risco é 81% maior. “Os números mostram que a única maneira de se evitar essa realidade teria sido identificar as populações mais vulneráveis e criar planos de proteção específicos, oferecendo informação e auxílio”, diz Maria Amélia Veras, uma das responsáveis pelo estudo.
Ela lembra ainda que estamos falando de uma população que teve menos possibilidade de se isolar adequadamente, ecoando número levantado a partir da PNAD/Covid: nas classes D e E, apenas 7,5% das pessoas puderam mudar o local de trabalho, sem precisar movimentar-se na cidade para chegar aos empregos.
E, para aqueles que tiveram que se deslocar, nem sempre foi possível encontrar no transporte público condições necessárias para que se mantivesse o distanciamento social. O Programa Cidades Sustentáveis, em pesquisa com 302 municípios de todo o Brasil, mostrou que 67% dos municípios não aumentaram as frotas de ônibus para diminuir o índice de passageiros e que 76% deles diminuíram a frota disponível.
O Programa Cidades Sustentáveis levantou também dados com relação ao saneamento básico e às condições de moradia, mostrando que essa foi uma das principais preocupações durante a pandemia e que 63% dos municípios identificaram a necessidade de implementar ou realizar manutenções na rede de saneamento básico dos bairros considerados mais precários. Aqui, os números variam bastante de acordo com a região do país: no Nordeste, foram 77%; no Norte e no Centro-oeste, 71%; no Sudeste e na região Sul, 55%.
Acesso à saúde
A variação não parece se dar por acaso. E está em consonância com pesquisas que mostraram como a pandemia viajou pelo país. Estudo publicado por Marcia de Castro e outros pesquisadores na revista “Science” mostra que, após chegar a São Paulo, o vírus logo começou a circular em direção ao norte do país – não raro, com o número de mortes crescendo mais rapidamente do que o de casos.
O levantamento feito pelo IEPS também mostra que a taxa de mortalidade por Covid-19 foi maior em 2020 na região Norte, onde o Índice de Vulnerabilidade Social atinge valores mais altos. O estudo utiliza o coeficiente de Pearson, que estabelece a correlação entre duas variáveis, sendo uma delas o número de mortes por Covid. A conclusão é que condições de moradia piores, maior número de trabalhadores informais e rendas menores foram decisivos na trajetória da doença.
Mesmo em estados não necessariamente habitados por grupos etários mais velhos ou com presença marcante de comorbidades. O estudo revela ainda que, no Norte, o número de leitos de UTI per capita era 50% menor do que na região Sul, assim como o número de profissionais médicos intensivistas.
Rudi Rocha não tem dúvida de que, sem o Sistema Único de Saúde (SUS), o quadro da pandemia no Brasil seria ainda pior. E vai além: “Uma das lições mais importantes que vamos tirar de tudo isso é o reconhecimento da importância e da competência do SUS como política de estado. Se o Brasil é bom em gerar desigualdade, o que o SUS faz é justamente o contrário.” Ainda assim, diz, “a locação de recursos e protocolos em locais específicos teria produzido resultados eficientes”.
Marcia de Castro também identificou, em sua pesquisa, a desigualdade nas ações tomadas como um dos motivos a explicar os números da pandemia no Brasil. “A diferença está entre agir antecipadamente ou reagir. Entre o surgimento da pandemia e a chegada ao Brasil, houve tempo para que uma estratégia fosse montada. Com maior testagem e identificação de regiões críticas, teria sido possível usar a rede já disponível, como os agentes comunitários de saúde, para realizar trabalhos de prevenção.”
Uma atuação como essa, em campo, completa Maria Amélia Veras, teria possibilitado atender a população mais vulnerável de maneira diferente. “São pessoas que não puderam fazer o isolamento e que carecem de maiores fontes de informações e de um olhar mais amplo sobre o que estava acontecendo.”
Para Marcelo Ribeiro, da UFRJ, a pandemia evidenciou problemas estruturais que precisam ser abordados. “Mesmo se você pode fazer o isolamento, questões como saneamento básico, por exemplo, não dependem apenas de vontade individual”, explica. “Há questões de renda, de inserção social, de melhor relação com o mercado de trabalho, entre tantas outras. A pandemia nos deu a oportunidade de lidar com esse quadro. E talvez ajude a entender que resolver isso é resolver também a economia.”
O que diz o governo federal
A CNN procurou os ministérios da Educação, Economia e Cidadania sobre o tema. O Ministério da Cidadania afirmou que tem trabalhado sistematicamente para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de proteção para a população mais vulnerável do país. “É compromisso desta gestão ampliar o alcance das políticas sociais e atingir, com maior eficácia, a missão de superar a pobreza e minimizar os efeitos da desigualdade socioeconômica em nosso país.”
A pasta informou que, em 2020, investiu mais de R$ 365 bilhões em políticas socioassistenciais e disse que iniciativas como o Programa Bolsa Família e o Auxílio Emergencial reduziram em 80% a extrema pobreza no Brasil.
Desde abril de 2020, o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família se mantém, segundo o governo, acima dos 14 milhões, com o recorde de 14,69 milhões em maio. O Ministério da Cidadania diz trabalhar na reformulação do programa para ampliar o número de famílias beneficiadas e reajustar os valores.
Em 2021, o Auxílio Emergencial contemplou 39,2 milhões, e os repasses somam quase R$ 18 bilhões. A pasta também citou a importância do Benefício de Prestação Continuada, destinado a pessoas com deficiência e idoso com 65 anos ou mais, e a estruturação da Iniciativa Brasil Fraterno, para distribuir cestas de alimentos aos mais vulneráveis.