Transtornos alimentares são problemas de gente rica? Estudo discorda
Nova pesquisa britânica desmistifica estereótipo e mostra que insegurança alimentar na infância aumenta risco de desenvolvimento de transtornos alimentares

Um equívoco comum sobre transtornos alimentares é que eles afetam apenas pessoas ricas. No entanto, esse estereótipo é contradito por pesquisas que mostram que pertencer a uma família de baixa renda, na verdade, aumenta o risco de desenvolver essas doenças.
Sintomas de transtornos alimentares são mais comuns entre jovens que crescem com menos recursos econômicos, segundo novo estudo britânico publicado na revista JAMA Network Open. Esta última pesquisa soma-se ao conjunto existente de evidências que relacionam a insegurança alimentar a uma maior vulnerabilidade aos transtornos alimentares. Estes são doenças mentais graves e potencialmente fatais que atualmente afetam cerca de 10% da população mundial.
Nos Estados Unidos, uma em cada cinco crianças — aproximadamente 14 milhões — vive atualmente em um lar com insegurança alimentar. Com o aumento dos custos dos alimentos e os cortes planejados em programas de nutrição para crianças e suas famílias, é esperado um aumento ainda maior nas taxas de fome e transtornos alimentares entre crianças de baixa renda.
O mais preocupante é que essas crianças são as que têm menor probabilidade de ter acesso a tratamento para transtornos alimentares. Esta tempestade perfeita de saúde pública é algo que escolas, famílias, pediatras e líderes governamentais precisam levar a sério.
Como a insegurança alimentar na infância alimenta o risco de transtornos alimentares
A falta de acesso consistente a alimentos prejudica a saúde física e o bem-estar das crianças no curto prazo e as coloca em maior risco de desenvolver problemas significativos de saúde mental no futuro. Um dos impactos menos conhecidos da fome são os transtornos alimentares, observa Jessica Wilson, nutricionista em Sacramento, Califórnia, e autora de "It's Always Been Ours: Rewriting the Story of Black Women's Bodies".
A insegurança alimentar contribui para transtornos alimentares através de uma série de processos fisiológicos e psicológicos. "Déficits calóricos criam este estado perpétuo de luta ou fuga, que pode aumentar os hormônios do estresse, e isso pode levar a um pensamento do tudo ou nada e outras dificuldades cognitivas", afirma Wilson.
Vivenciar a fome também afeta diretamente como as crianças se relacionam com a comida e seus corpos: "Primeiro, pode ensinar as crianças a ignorar os sinais de fome, algo que vemos em todos os tipos de transtornos alimentares", diz Wilson. "E segundo, também pode desativar os sinais de saciedade, algo que também observamos nos transtornos alimentares."
Assim como dietas ou outras restrições intencionais, a escassez causada por motivos econômicos pode interferir na relação da criança com a comida. Sem acesso consistente a alimentos suficientes — independentemente do motivo — os jovens podem ter dificuldade para desenvolver padrões alimentares saudáveis.
Embora seja natural comer em maiores quantidades após um período de alimentação insuficiente, para alguns, essa privação gera desejos intensos, onde certos alimentos podem ganhar mais "poder" ou ter uma "carga" especial, explica Wilson. Acumular e esconder comida são comportamentos comuns tanto na insegurança alimentar quanto nos transtornos alimentares.
Mesmo quando há alimentos disponíveis, algumas crianças que já passaram por privação nutricional nem sempre conseguem satisfazer suas necessidades. Devido ao estigma em torno da merenda escolar, alguns estudantes preferem passar fome por vergonha, algo que Wilson testemunhou em primeira mão em seu trabalho com comunidades de baixa renda.
A desinformação perpetua uma caracterização negativa da alimentação escolar, mesmo que muitas crianças recebam sua refeição mais nutritiva do dia na escola.
"Algumas crianças podem desenvolver uma mentalidade de privação. Então, se percebem que o dinheiro está curto em casa, podem entrar num padrão de querer pular refeições e dar a comida para outros", disse Wilson. "Não se alimentar, pensando que as necessidades de outras pessoas são mais importantes que as suas próprias, é também o que vemos na anorexia, esse sentimento de não ser digno de ter comida."
Wilson observa isso até mesmo em clientes adultos que cresceram "ignorando suas próprias necessidades" porque não havia comida suficiente para todos. Ela tem pacientes com transtornos alimentares que dizem: "Eu consegui passar uma década da minha vida sem ter que alimentar ou cuidar do meu corpo. Por que preciso começar agora?"
Transtornos alimentares e desnutrição não têm uma "aparência" específica
Embora as crianças mais pobres sejam as mais vulneráveis, mesmo famílias que vivem acima da linha da pobreza podem experimentar insegurança alimentar devido a outras despesas, como contas médicas e o alto custo da moradia e cuidados infantis, segundo Carolyn Wait Vega, diretora associada de análise de políticas da Share Our Strength, que administra a campanha nacional No Kid Hungry.
Insegurança alimentar não significa necessariamente que as crianças vão dormir com o estômago roncando todas as noites. "Na verdade, pode se manifestar como pais não conseguindo comprar alimentos de qualidade que gostariam de oferecer, comida acabando antes do fim do mês e tendo que fazer muitas escolhas difíceis", disse Vega.
Este estresse familiar contínuo tem impactos dramáticos na saúde das crianças. "Sabemos que os efeitos são sérios, que têm um impacto imediato no desempenho escolar das crianças, assim como em sua saúde e rendimento acadêmico a longo prazo", acrescentou.
Contrariando suposições populares, crianças que enfrentam insegurança alimentar não necessariamente aparecem abaixo do peso. Devido ao tamanho corporal geneticamente predeterminado ou à alteração hormonal e metabólica causada pela insegurança alimentar e outros estressores, "as crianças podem absolutamente estar mais gordinhas e ainda assim estarem malnutridas ou subnutridas, algo que não é de conhecimento comum", afirmou Wilson.
Presumir que o tamanho corporal de uma criança pode contar toda a história sobre seu estado nutricional faz com que muitas crianças famintas sejam ignoradas — e até recebam a mensagem contraproducente de que estão comendo "demais". Para as crianças, "ficar sem comida é devastador, tanto para sua fisiologia quanto para seu humor, sua capacidade de aprender, de se envolver e de ser fisicamente ativa", disse Wilson.
Não são muitos os educadores e profissionais médicos que compreendem "as várias formas como os transtornos alimentares podem se manifestar", disse Wilson. "Não são apenas meninas brancas, magras e ricas".
Crianças de todos os tamanhos corporais podem desenvolver transtornos alimentares. Crianças maiores são frequentemente consideradas como comendo "demais" quando, na verdade, podem estar lutando tanto contra a insegurança alimentar quanto contra um transtorno alimentar. Envergonhá-las por suas escolhas alimentares ou reduzir seu acesso à comida apenas as afasta ainda mais da saúde.
"Frequentemente, quando crianças com transtornos alimentares restritivos ou alguns tipos de alimentação desordenada chegam ao consultório médico com peso elevado, recebem feedback de que precisam perder peso ou são elogiadas por não comer", disse Wilson.
Esta abordagem comum "apenas perpetuará esse ciclo e elas podem tentar se restringir ainda mais — quando, na verdade, precisam comer mais para ajudar a regular seus níveis de energia, metabolismo e funcionamento cognitivo", acrescentou.
Com barreiras sistêmicas adicionais no acesso a alimentos nutritivos, as crianças e sua saúde continuarão sofrendo.
"As crianças ficarão mais desnutridas e haverá ainda menos recursos para apoiar jovens com transtornos alimentares", alertou Wilson.
Fome infantil deve se agravar
Apesar do já significativo problema da fome infantil nos Estados Unidos, o Congresso recentemente aprovou reduções no Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP), anteriormente conhecido como vale-refeição. O projeto de reconciliação aprovado pelo Congresso e sancionado pelo presidente Donald Trump em julho incluiu "os maiores cortes ao SNAP na história do programa", disse Vega.
Além de reduzir o acesso à alimentação para famílias em dificuldade, esses cortes terão "efeitos em cascata de longo alcance" nos programas de merenda escolar, devido à forma como os beneficiários do SNAP são frequentemente inscritos automaticamente nas refeições escolares gratuitas. Mais distritos enfrentarão dificuldades para fornecer alimentos aos estudantes, incluindo aqueles que não estavam previamente inscritos em programas de assistência. As comunidades também podem perder seus mercados locais como resultado dos cortes no SNAP.
O que pais preocupados podem fazer
Para famílias com dificuldades para colocar comida na mesa, a Feeding America facilita a identificação de bancos de alimentos locais e outros recursos. Esta organização sem fins lucrativos também auxilia pais na navegação do processo de inscrição em programas de assistência nutricional. A Escola de Saúde Pública Harvard T.H. Chan apresenta estratégias práticas para compras e planejamento de refeições com orçamento limitado.
Para tentar diminuir os impactos dos cortes do SNAP nos programas escolares, Vega incentiva todas as famílias a enviarem formulários de solicitação de refeições, mesmo que achem que não se qualificarão — e pede aos pais de todos os níveis de renda que sejam mais abertos à ideia de seus filhos comerem a merenda escolar.
"Mesmo que você não seja elegível para refeições gratuitas ou com preço reduzido, ter seu filho participando das refeições escolares ajuda o departamento de nutrição escolar a funcionar melhor e fornecer melhor alimentação para todos", disse ela.
Vega reconhece que ideias equivocadas sobre a comida da cantina podem levar algumas famílias a enviar marmita junto com a mensagem de que as refeições escolares são inadequadas ou até prejudiciais. Mas isso não é correto.
"Os pais podem ainda ter memórias de como eram as refeições escolares quando eles estudavam, mas as refeições escolares mudaram muito nos últimos 10 a 15 anos desde que a Lei Crianças Saudáveis e Sem Fome entrou em vigor", acrescentou Vega.
Para aqueles ansiosos por ver o retorno de um apoio mais amplo à nutrição infantil, Wilson tem esperança. "Eu diria que os pais, especialmente as mães, frequentemente têm sido aqueles que exigem mudanças. Ainda não é tarde demais para defender a não realização desses cortes."
Vega concordou: "É um objetivo de longo prazo ver essas mudanças revertidas, e acredito que quanto mais pessoas entenderem as implicações, mais poderão levar isso aos seus representantes no Congresso e dizer: ei, não acho que isso foi a coisa certa a fazer. Vamos reconsiderar."


