Cientistas tentam descobrir como criar vida humana com células-tronco

Estudo do desenvolvimento dos embriões e das causas da infertilidade apresenta desafios éticos, legais e regulatórios

Katie Hunt, da CNN
Um modelo de embrião humano gerado a partir de células-tronco reprogramadas pelo laboratório de Magdalena Zernicka-Geotz, professora de biologia e engenharia biológica da Cátedra Bren no Caltech. A estrutura mostra os diferentes tipos de células presentes nos estágios iniciais do desenvolvimento humano
Um modelo de embrião humano gerado a partir de células-tronco reprogramadas pelo laboratório de Magdalena Zernicka-Geotz, professora de biologia e engenharia biológica da Cátedra Bren no Caltech. A estrutura mostra os diferentes tipos de células presentes nos estágios iniciais do desenvolvimento humano  • Zhaodi Liao/Zernicka-Goetz Laboratory via CNN Newsource
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Cientistas estão explorando maneiras de imitar as origens da vida humana sem dois componentes fundamentais: esperma e óvulo.

Eles estão induzindo aglomerados de células-tronco – células programáveis que podem se transformar em muitos tipos diferentes de células especializadas – a formar estruturas cultivadas em laboratório que se assemelham a embriões humanos.

Esses modelos de embrião estão longe de serem réplicas perfeitas. Mas, à medida que os laboratórios competem para produzir a melhor semelhança, as estruturas estão se tornando cada vez mais complexas, parecendo e se comportando, de certa forma, como embriões.

As estruturas podem ampliar o estudo do desenvolvimento humano e das causas da infertilidade. No entanto, o ritmo vertiginoso da pesquisa, que começou há pouco mais de uma década, está apresentando desafios éticos, legais e regulatórios para o campo da biologia do desenvolvimento.

“Nunca poderíamos ter antecipado que a ciência progrediria dessa forma. É incrível, tem sido transformador o quão rápido o campo avançou”, disse Amander Clark, professora de biologia celular molecular e do desenvolvimento na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), e diretora fundadora do Centro da UCLA para Ciência Reprodutiva, Saúde e Educação.

“No entanto, à medida que esses modelos avançam, é crucial que sejam estudados dentro de um marco que equilibre o progresso científico com considerações éticas, legais e sociais.”

Clark é copresidente do Grupo de Trabalho sobre Modelos de Embriões da Sociedade Internacional para Pesquisa com Células-Tronco (ISSCR), que está agora tentando atualizar tal estrutura em escala global.

Em questão está até onde os pesquisadores poderiam ir com essas células-tronco, dado tempo e as condições certas. Os cientistas poderiam eventualmente replicar um embrião real que tenha batimentos cardíacos e sinta dor, ou um que possa crescer até se tornar um modelo humano completamente desenvolvido?

Modelos de embrião: quão realistas são?

Com base nas pesquisas atuais, nenhum modelo imita totalmente o desenvolvimento de um embrião humano — tampouco se suspeita que algum modelo tenha potencial para formar um feto, o próximo estágio no desenvolvimento humano, equivalente à oitava semana ou ao 56º dia de uma gestação.

Criar modelos também tem sido um processo incerto para a maioria dos grupos de pesquisa, com apenas uma pequena porcentagem de células-tronco conseguindo se auto organizar em estruturas semelhantes a embriões.

No entanto, esses testes exibem várias características internas e tipos de células que uma estrutura embrionária precisa para se desenvolver, como o âmnio, o saco vitelino e a linha primitiva, e que poderiam, “com melhorias futuras, progredir eventualmente para embriões mais avançados, incluindo coração, cérebro e outros rudimentos de órgãos”, segundo um artigo de junho coautorado por Clark e publicado na revista Stem Cell Reports.

Modelos semelhantes feitos com células de camundongos já chegaram ao ponto em que o cérebro começa a se desenvolver e o coração se forma.

Criticamente, o objetivo não é gerar esses modelos até se tornarem fetos viáveis, capazes de consciência, mas criar uma ferramenta de pesquisa útil que revele os mistérios de como uma célula humana se divide e se reproduz até se tornar um corpo completo.

Os modelos também permitem experimentos que não podem ser realizados com embriões doados em laboratório. No entanto, à medida que a pesquisa avança, é possível que a distinção entre uma estrutura cultivada em laboratório e um organismo humano vivo se torne confusa.

E como os modelos estão na interseção de campos historicamente controversos — biologia de células-tronco e embriologia —, o trabalho exige uma supervisão mais rigorosa do que outras formas de pesquisa científica, segundo Clark.

Uma imagem de um modelo de embrião humano desenvolvido pela pesquisadora Naomi Moris no Instituto Francis Crick em Londres, que foi tirada com uma técnica chamada microscopia eletrônica de varredura, que mostra o aglomerado de células em três dimensões • Naomi Moris via CNN Newsource
Uma imagem de um modelo de embrião humano desenvolvido pela pesquisadora Naomi Moris no Instituto Francis Crick em Londres, que foi tirada com uma técnica chamada microscopia eletrônica de varredura, que mostra o aglomerado de células em três dimensões • Naomi Moris via CNN Newsource

Clark e o Grupo de Trabalho sobre Modelos de Embriões da ISSCR recomendaram, em junho, uma supervisão mais rigorosa para pesquisas que envolvem esses modelos. As diretrizes da sociedade, que passaram a incluir orientação sobre modelos de embrião em 2021, estão sendo revisadas para incorporar as novas recomendações do grupo e serão divulgadas em algumas semanas.

As diretrizes atuais da ISSCR fazem uma distinção entre “modelos de embriões integrados”, que replicam a estrutura como um todo, e “modelos não integrados”, que replicam apenas uma parte de um embrião — exigindo uma supervisão mais estrita para os primeiros.

A versão atualizada recomendará que todas as pesquisas que envolvem ambos os tipos de modelos sejam submetidas a “uma revisão ética e científica apropriada”.

A atualização proposta também estabelecerá duas linhas vermelhas: a orientação atual já proíbe a transferência de modelos de embriões humanos para um útero humano ou animal. A nova versão também aconselhará os cientistas a não usarem modelos de estruturas humanas para buscar a ectogênese — o desenvolvimento de um embrião fora do corpo humano por meio do uso de úteros artificiais — essencialmente criando vida do zero.

Segundo Clark, os modelos de embriões baseados em células-tronco nos quais ela e outras equipes trabalham devem ser considerados distintos da pesquisa com estruturas humanas reais, geralmente excedentes de fertilizações in vitro doados à ciência.

Tal pesquisa é rigidamente regulamentada em muitos países, e proibida em outros, como Alemanha, Áustria e Itália.

Faz sentido, pelo menos por enquanto, tratar modelos e estruturas reais de forma diferente, disse Emma Cave, professora de direito da saúde na Universidade de Durham, no Reino Unido, que trabalha com modelos de embriões.

Ela usa diamantes como analogia: diamantes naturais e seus equivalentes comerciais cultivados em laboratório são feitos dos mesmos componentes químicos, mas a sociedade lhes atribui valores diferentes. Ela alertou que não se deve correr para regulamentar modelos de embriões cedo demais, pois isso pode sufocar pesquisas promissoras.

“Estamos em um estágio inicial de desenvolvimento, em que pode ser que em 5, 10, 15, 20 anos eles se pareçam muito com um organismo humano, ou pode ser que nunca cheguem a esse estágio”, disse ela.

Um "teste de Turing"  para modelos de embrião

À medida que a pesquisa científica se desenvolve, a supervisão de modelos de embriões assume formas diferentes em diferentes jurisdições.

A Austrália adotou a abordagem mais rigorosa, incluindo modelos no mesmo arcabouço regulatório que rege o uso de embriões humanos, exigindo uma permissão especial para pesquisa.

Em 2023, os Países Baixos propuseram tratar “embriões não convencionais” da mesma forma que estruturas humanas perante a lei. A proposta ainda está em discussão, segundo o Conselho de Saúde dos Países Baixos.

Pesquisadores no Reino Unido divulgaram um código de conduta voluntário em 2024, e o Japão também publicou novas diretrizes regulando a pesquisa na área.

Nos Estados Unidos, os modelos de embriões não são cobertos por nenhuma estrutura legal específica, e as propostas de pesquisa são analisadas por instituições individuais e órgãos financiadores, observou Clark.

O Instituto Nacional de Saúde (NIH) disse, em 2021, que consideraria pedidos de financiamento público para pesquisas sobre modelos de embrião caso a caso e monitoraria os avanços para entender suas capacidades.

Poucos outros países, no entanto, parecem prontos para adotar legislação específica sobre o assunto, tornando as diretrizes da ISSCR uma referência “altamente influente” para pesquisadores ao redor do mundo, segundo o Nuffield Council on Bioethics, uma organização sediada em Londres que assessora questões éticas na biomedicina.

O conselho afirmou, em um relatório de novembro de 2024, que diretrizes internacionais são essenciais para evitar “a realização de pesquisas que não atendam a altos padrões éticos e científicos; isso, por sua vez, poderia impactar a percepção pública nacional de risco, levando a uma abordagem mais avessa a riscos que dificulta o desenvolvimento científico responsável.”

Clark disse que as novas diretrizes voluntárias da ISSCR ajudariam órgãos de financiamento científico ao redor do mundo a avaliar melhor os pedidos e os editores de revistas científicas a entender se o trabalho foi realizado de forma eticamente responsável — especialmente em locais onde a lei ou outras regras não levam em conta os modelos de embriões.

O desafio futuro para os reguladores será entender quando e se um modelo teria funcionalmente a mesma natureza de um embrião humano, e, portanto, potencialmente receber as mesmas proteções ou proteções semelhantes às que cercam essas estruturas humanas, disse Naomi Moris, líder de grupo no laboratório de modelos de desenvolvimento do Francis Crick Institute.

O único teste definitivo seria transferir o modelo para o útero de uma substituta, um movimento proibido pelos padrões bioéticos atuais.

No entanto, Moris está entre um grupo de pesquisadores que propôs dois pontos críticos — ou “testes de Turing”, inspirados na forma como o cientista da computação Alan Turing determinava se máquinas poderiam pensar como humanos — para avaliar quando as distinções entre um modelo cultivado em laboratório e um embrião real desapareceriam.

“Essas coisas não são embriões neste momento, claramente não têm a mesma capacidade que uma estrutura humana tem. Mas como saberíamos de antemão que estamos nos aproximando disso?”, disse Moris.

“Essa foi a lógica por trás disso. Que métricas usaríamos como uma espécie de proxy para o potencial de um modelo que poderia então sugerir que ele está, pelo menos, se aproximando dos mesmos tipos de equivalência que um organismo humano.”

O primeiro teste mediria se os modelos podem ser produzidos consistentemente e se desenvolvem fielmente ao longo de um determinado período como embriões normais.

O segundo teste avaliaria quando modelos de embriões de células-tronco de animais — especialmente de animais mais próximos dos humanos, como macacos — mostram o potencial de formar animais vivos e férteis ao serem transferidos para úteros substitutos, sugerindo assim que o mesmo resultado seria, em teoria, possível para modelos de embriões humanos.

Isso ainda não aconteceu, mas pesquisadores chineses criaram, em 2023, modelos a partir de células-tronco de macacos que, quando implantados em uma macaca substituta, desencadearam sinais de gravidez precoce.

Ética embrionária: um equilíbrio delicado

Defensores da tecnologia afirmam que os modelos oferecem uma alternativa igualmente útil e possivelmente mais ética à pesquisa com embriões humanos escassos e valiosos. Os modelos têm o potencial de ser produzidos em escala em laboratório para testes de toxicidade de medicamentos em células — uma aplicação impactante, já que gestantes frequentemente são excluídas de ensaios clínicos por questões de segurança.

No entanto, o potencial desses modelos para serem usados na criação da vida tem causado preocupação entre bioeticistas. “Há grupos comerciais e outros levantando a possibilidade de construir um embrião in vitro e combinar diferentes abordagens de bioengenharia para levar tal entidade à viabilidade”, segundo o artigo de junho coautorado por Clark e outros membros do grupo de trabalho da ISSCR.

“Atualmente, a prática de levar um SCBEM (modelo de embrião baseado em células-tronco) à viabilidade é considerada insegura e antiética e não deve ser perseguida”, aponta o estudo.

Cave disse que a ectogênese pode parecer ficção científica, mas não é impossível. À medida que os modelos de embrião continuam a se desenvolver, e pesquisas separadas sobre úteros artificiais avançam, as duas tecnologias podem se encontrar, disse ela.

O desafio, acrescentou, é reconhecer o valor dessas linhas de pesquisa, mas ao mesmo tempo evitar seu uso indevido.

Jun Wu, professor associado do Departamento de Biologia Molecular da Universidade do Texas Southwestern, é um dos vários biólogos de células-tronco envolvidos na área.

Ele concorda que a ectogênese deve estar fora de questão, mas explica que os pesquisadores que desenvolvem modelos de embriões precisam de um equilíbrio delicado: para desvendar os mistérios do embrião humano, os modelos precisam se assemelhar suficientemente as estruturas para oferecer insights reais — mas não tanto que corram o risco de serem vistos como viáveis.

A "grande caixa preta" — e um avanço

Magdalena Zernicka-Geotz, professora de biologia e engenharia biológica no Caltech, disse que recebeu com satisfação as novas diretrizes.

Ela anunciou em 2023 que sua equipe havia conseguido um feito inédito: cultivar modelos de embriões até um estágio semelhante aos de 14 dias. No mesmo ano, Jacob Hanna, professor de biologia de células-tronco e embriologia no Instituto Weizmann de Ciências, em Israel, afirmou que sua equipe havia ido um passo além com um modelo derivado de células da pele que mostrou todos os tipos celulares essenciais para o desenvolvimento de um embrião — incluindo o precursor da placenta.

Juntos, os trabalhos representaram um avanço no uso potencial dos modelos em pesquisas sobre perdas gestacionais: aos 14 dias, o embrião humano começou a se fixar na parede do útero, um processo conhecido como implantação. Muitas interrupções da gravidez ocorrem nessa fase, segundo Zernicka-Geotz.

Magdalena Zernicka-Geotz, professora Bren de biologia e engenharia biológica no Caltech • Dru Donovan via CNN Newsource
Magdalena Zernicka-Geotz, professora Bren de biologia e engenharia biológica no Caltech • Dru Donovan via CNN Newsource

Pesquisas de laboratório com embriões humanos além dos 14 dias — incluindo os doados por tratamentos de fertilização — são proibidas na maioria das jurisdições.

E embora alguns cientistas estudem tecidos obtidos por abortos, esses tecidos são limitados porque poucos procedimentos ocorrem entre a 2ª e a 4ª semana de desenvolvimento embrionário.

A capacidade de cultivar um modelo fora do útero nesse estágio de desenvolvimento abre caminho para estudos que não são possíveis com embriões humanos vivos.

“Mais gestações falham do que têm sucesso durante essa janela crítica pouco antes, durante e logo após a implantação. É por isso que criamos no meu laboratório estruturas semelhantes a embriões a partir de células-tronco como forma de realmente entender esse estágio de desenvolvimento tão crítico e tão frágil”, disse Zernicka-Goetz.

Clark concordou que modelos podem ser usados para enfrentar problemas de infertilidade: “Implantação. Essa é a grande caixa preta. Uma vez que o embrião se implanta no útero, entendemos muito pouco sobre o desenvolvimento”, disse Clark.

“E se não pudermos estudar isso, não saberemos o que estamos perdendo.”

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