Américo Martins
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Américo Martins

Especialista em jornalismo internacional e fascinado pelo mundo desde sempre, foi diretor da BBC de Londres e VP de Conteúdo da CNN; já visitou mais de 70 países

Análise: Nova estratégia de Trump defende interferência na América Latina

Casa Branca divulgou documento de segurança nacional anunciando maior presença militar na região, busca por interesses comerciais e recompensas a “governos alinhados”

Presidente dos EUA, Donald Trump
Presidente dos EUA, Donald Trump  • Alex Wong/Getty Images
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A nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, divulgada esta semana pelo governo de Donald Trump, deixa claro que Washington pretende voltar a interferir política e até militarmente nos países da América Latina sempre que considerar necessário.

Depois de décadas em posição secundária, a região volta a ser tratada como estratégica e como uma das principais zonas de influência imediata para os americanos.

No documento, a Casa Branca afirma que seus objetivos para o hemisfério podem ser resumidos em duas palavras: “alinhar e expandir”, sinalizando a intenção de ampliar a presença política, militar e econômica no continente.

O texto faz referências diretas à doutrina Monroe, formulada no início do século XIX pelo então presidente James Monroe, que defendia que a América Latina deveria permanecer sob influência direta de Washington.

Essa visão serviu de base para intervenções que marcaram profundamente a história da região: do apoio ao golpe militar de 1964 ao envolvimento na derrubada do socialista Salvador Allende no Chile, em 1973, além de operações clandestinas da CIA na América Central e invasões ilegais no Caribe e no Panamá.

A estratégia de Trump ecoa esse passado, agora revestida pelo argumento de que rivais estratégicos como a China ameaçam a segurança nacional americana ao expandirem sua presença econômica na região.

O documento diz que a partir de agora vai valer o “corolário Trump”, uma visão ainda mais agressiva da doutrina Monroe.

Esse “corolário Trump” deixa claro que Washington vai reduzir a prioridade dada, nas últimas décadas, à defesa da democracia e dos direitos humanos, e vai concentrar esforços em conter o avanço chinês em mercados, infraestrutura, tecnologia e cadeias produtivas.

Hoje, a China é o principal parceiro comercial de quase todas as grandes economias da América Latina, ocupando o espaço deixado por anos de retração americana. Agora, Trump vai tentar reverter essa tendência.

Mecanismos de pressão

A administração Trump propõe que os EUA “reconsiderem sua presença militar no Hemisfério Ocidental”, defendendo que as Forças Armadas do país sejam reorientadas para enfrentar “ameaças urgentes” no continente.

Entre as medidas previstas estão: “um reajuste de nossa presença militar global” para privilegiar operações no hemisfério ocidental, o aumento da atuação da Marinha e da Guarda Costeira para controlar rotas marítimas, impedir migração e combater cartéis, “desdobramentos direcionados” para reforçar fronteiras e enfrentar organizações criminosas e abertura ou expansão do acesso militar a pontos estratégicos da região.

Na prática, trata-se de maior vigilância, maior capacidade de intervenção e menor tolerância a governos que não se alinhem automaticamente às prioridades de Washington.

Parte desse movimento já está sendo visto na região próxima à Venezuela, para onde os americanos deslocaram várias embarcações de guerra e até o maior porta-aviões do mundo, o Gerald Ford.

O documento também é explícito ao afirmar que os EUA “recompensarão e incentivarão os governos, partidos políticos e movimentos da região que estejam amplamente alinhados com nossos princípios e estratégia”.

A mensagem não podia ser mais clara: países dóceis aos interesses dos Estados Unidos terão benefícios. Os que se aproximarem mais de Pequim ou adotarem uma política externa mais autônoma enfrentarão pressão crescente.

Interesse econômico

A estratégia também reforça o objetivo de ampliar as vantagens econômicas dos EUA no continente. O documento afirma que Washington usará “tarifas e acordos comerciais recíprocos como ferramentas poderosas”.

A Casa Branca também deixa claro que busca acesso privilegiado a “pontos e recursos estratégicos” da região, a serem desenvolvidos com parceiros locais. Embora não citado nominalmente, trata-se de minerais críticos, petróleo e outras cadeias essenciais à economia de alta tecnologia.

Apesar de apresentar a estratégia como uma defesa de “soberania” e “liberdade”, o texto revela uma lógica de tutela dos Estados Unidos na região.

Afinal, o texto afirma que cabe a Washington definir o que é “estabilidade”, quais são “as ameaças” e quem deve ser considerado “parceiro confiável”.

Um trecho sintetiza esse entendimento ao afirmar que os EUA devem ser “preeminentes no Hemisfério Ocidental como condição para nossa segurança e prosperidade”. Ou seja: qualquer movimento de autonomia regional vai passar a ser visto como risco estratégico.

Empresas americanas no centro

O documento orienta diplomatas e funcionários dos EUA a promover ativamente interesses das empresas americanas, pressionando governos locais quando necessário.
Essa estratégia foi vista muitas vezes no passado, com o governo americano chegando a ser acusado de derrubar governos na região para defender os interesses de empresas que tinham monopólios em determinados países.

A nova estratégia exige que embaixadas identifiquem oportunidades comerciais e que agências federais financiem ou facilitem a expansão de empresas americanas na região.

Ao mesmo tempo, os diplomatas devem agir para desencorajar a atuação de competidores externos, sobretudo chineses.

A nova doutrina de Trump é apresentada como um plano para conter a migração irregular, combater cartéis e fortalecer economias locais, além da dos Estados Unidos.
Mas, em sua essência, a política de segurança nacional não esconde que seu objetivo central é reconstruir a hegemonia americana no continente.
Resta saber como os governos que buscam mais autonomia na região vão reagir às imposições de Washington.