Análise: Quando os céus estão calmos, mas a paz ainda não nasceu
Cessar-fogo em Gaza traz alívio e simbolismo, mas a paz verdadeira seguirá distante enquanto não houver justiça, soberania e reconstrução política genuína

Donald Trump subiu nesta segunda-feira (13) à tribuna do Knesset, em Jerusalém, para anunciar aquilo que descreveu como “o amanhecer histórico de um novo Oriente Médio”. Em um discurso que misturou solenidade e autopromoção, declarou que “os céus estão calmos, as armas estão silenciosas e o sol nasce em uma terra santa que finalmente está em paz”. O cessar-fogo entre Israel e Hamas foi celebrado por multidões, aliviando um trauma humanitário sem precedentes.
Há, sem dúvida, razões legítimas para celebrar. O conflito cessou; reféns foram libertados; caminhões de ajuda começam a cruzar fronteiras. O horror cotidiano deu lugar a uma trégua. Mas, se a guerra terminou, a paz ainda não começou. A calmaria que se instalou é um intervalo; não uma solução.
O plano norte-americano, composto por 20 itens, oferece a base operacional dessa trégua. Estabelece a suspensão imediata das hostilidades, a troca de reféns por prisioneiros palestinos, a retirada parcial das tropas israelenses e a criação de corredores humanitários sob supervisão internacional. Prevê também a demilitarização de Gaza, a destruição de túneis e arsenais, a criação de uma autoridade de transição e a chegada de até 400 caminhões de suprimentos diários.
Essas medidas respondem à urgência do momento: salvar vidas, conter a catástrofe, permitir a reconstrução material. Mas não enfrentam as causas estruturais que produzem o ciclo recorrente de guerra e trégua, trégua e guerra. Sem respostas para essas dimensões, o acordo corre o risco de ser apenas mais uma pausa antes da próxima explosão.
A libertação de reféns vivos, o retorno dos corpos dos mortos e o início da reconstrução são vitórias humanitárias concretas. O cessar-fogo oferece um respiro a milhões de civis e abre, ao menos em teoria, uma janela diplomática para rearticular o equilíbrio regional. Mas seria ingênuo confundir silêncio de armas com paz duradoura. A paz exige muito mais do que a ausência de tiros: requer instituições legítimas, justiça histórica, reconstrução econômica, segurança compartilhada e dignidade para todos os envolvidos. Nada disso está garantido.
O discurso de Trump foi eficaz em criar um clima de alívio, mas limitado em substância. A “vitória” proclamada ignora o fato de que o conflito não se encerra com rendição militar; ele se transforma em disputa política e social, que exigirá anos de reconstrução institucional.
Mesmo que o cessar-fogo se sustente, ele repousa sobre alicerces frágeis. A começar pela governança: quem administrará Gaza nos próximos meses? O acordo prevê uma autoridade técnica sob supervisão internacional, mas não define quem a compõe nem com que legitimidade atuará. O Hamas poderá manter funções limitadas de segurança interna, enquanto se desarma gradualmente. Essa transição, se mal gerida, pode gerar um vácuo de poder fértil para novas insurgências.
A reconstrução também está cercada de incertezas. Gaza precisará de bilhões de dólares em investimento, mas sem mecanismos sólidos de transparência, o risco de desvio e desigualdade na distribuição de recursos é alto. O plano menciona projetos de emprego e educação, mas não detalha como assegurar sustentabilidade econômica a longo prazo.
No plano humano, há uma ferida moral aberta. Centenas de milhares de civis traumatizados, famílias destruídas, crianças órfãs e cidades em ruínas não se reconstroem apenas com cimento e caminhões de suprimentos. Sem políticas robustas de reparação, saúde mental e reintegração social, a sensação de derrota e humilhação seguirá alimentando o ressentimento.
Há ainda o dilema da justiça. Crimes de guerra, execuções e ataques indiscriminados foram cometidos, segundo a Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre o Território Ocupado ligada à ONU. O acordo silencia sobre mecanismos de responsabilização, como tribunais ou comissões de verdade. A impunidade institucionalizada mina a confiança e perpetua o ciclo da violência.
Por fim, paira a questão essencial: a soberania palestina. Nenhum dos vinte itens do plano prevê, de maneira explícita, o reconhecimento de um Estado palestino. A promessa de uma “autoridade transitória” pode ser lida como adiamento indefinido da autodeterminação. Sem horizonte político, a trégua corre o risco de se converter em administração colonial disfarçada.
Trump afirmou que “Israel venceu tudo o que podia vencer pela força das armas”. É uma frase de impacto, mas também o retrato da armadilha. Nenhum povo vence quando a vitória militar é construída sobre ruínas. O desafio, agora, é transformar o poder bélico em poder político, e o poder político em justiça.
A história recente do Oriente Médio está repleta de tréguas que se apresentaram como paz e fracassaram. O Acordo de Oslo, em 1993, parecia definitivo; o Plano de Annapolis, em 2007, também. Ambos se desintegraram porque faltou enfrentar as causas de fundo: a ocupação, a desigualdade, o ressentimento e a ausência de soberania. O acordo atual não foge a essa regra.
Sem esses pilares, a calmaria de hoje será lembrada apenas como o intervalo entre dois horrores. Sim, os céus estão calmos. Sim, o sol nasceu. Mas a verdadeira aurora da paz ainda depende de escolhas difíceis e demoradas. A diplomacia pode abrir caminhos, mas apenas a coragem de enfrentar as causas profundas do conflito - desigualdade, ocupação, exclusão - poderá sustentar uma paz que não se desfaça com o próximo disparo.
A guerra acabou. Mas a paz, essa, ainda está por vir.