Fernanda Magnotta
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Fernanda Magnotta

PhD especializada em Estados Unidos. Professora da FAAP, pesquisadora do CEBRI e do Wilson Center. Referência brasileira na área de Relações Internacionais

Trump, o Irã e a crise em torno do “poder de guerra” nos EUA

Nova ação militar de Trump contra o Irã sem autorização do Congresso promete reacender uma grave crise sobre os limites do poder presidencial nos Estados Unidos

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A decisão do presidente Donald Trump de recorrer à força militar contra o Irã por meio de ataques cirúrgicos às instalações nucleares de Fordow e outras, como o presidente afirma ter realizado, deve desencadear não apenas uma escalada internacional de consequências imprevisíveis, mas também uma crise política e jurídica doméstica de grandes proporções nos Estados Unidos.

O ponto de partida é a própria Constituição norte-americana. Em seu Artigo I, Seção 8, ela estabelece com clareza que o poder de declarar guerra pertence exclusivamente ao Congresso.

Trata-se de um pilar fundamental do sistema de freios e contrapesos que estrutura a república norte-americana, concebido exatamente para evitar que decisões tão graves quanto a entrada em guerra fique a cargo unilateral do Executivo.

O presidente, embora comandante-em-chefe das Forças Armadas (Artigo II, Seção 2), não detém, em teoria, a prerrogativa de iniciar um conflito armado sem autorização legislativa.

Contudo, essa divisão de competências tem sido corroída ao longo das décadas por mecanismos legais e políticos que permitiram uma expansão significativa do poder bélico presidencial. O mais notório desses mecanismos é a chamada AUMF (Authorization for Use of Military Force), um instrumento legislativo que autoriza o uso da força militar sem uma declaração formal de guerra.

 

 

Na prática, as AUMFs têm funcionado como mandatos amplos e duráveis para a ação militar, muitas vezes invocados muito além de seu contexto original.

Duas AUMFs, em especial, têm sido reutilizadas por sucessivos governos com interpretações expansivas: a de 2001, aprovada logo após os ataques de 11 de setembro para combater a Al-Qaeda e seus aliados, e a de 2002, que serviu de base para a invasão do Iraque. Ambas continuam em vigor em 2025, apesar das mudanças drásticas no cenário global.

É precisamente nesse ponto que se abre a dimensão interna do problema: o uso anacrônico de AUMFs para justificar novas ações militares tem sido alvo de intensas críticas do Congresso, da sociedade civil e de setores do próprio aparato jurídico e militar.

No caso de novos ataques, como o bombardeio da usina subterrânea de Fordow, uma instalação sensível dentro da estrutura nuclear iraniana, Trump deve alegar novamente o uso de uma dessas autorizações existentes.

Poderia dizer, por exemplo, que o Irã apoia grupos terroristas ou que representa uma continuação das ameaças endereçadas pela AUMF de 2002. Embora esse tipo de raciocínio jurídico tenha sido aceito em outras ocasiões, ele está longe de ser incontestável.

É precisamente nesse ponto que se abre a dimensão interna do problema: o uso anacrônico de AUMFs para justificar novas ações militares tem sido alvo de intensas críticas do Congresso, da sociedade civil e de setores do próprio aparato jurídico e militar.

Parlamentares de ambos os partidos têm denunciado o que consideram um abuso da autoridade presidencial, alertando para a necessidade de revogar ou atualizar as AUMFs existentes.

Em 2021, por exemplo, a Câmara dos Representantes votou pela revogação da AUMF de 2002, num raro gesto bipartidário, embora o Senado não tenha avançado na pauta.

Ademais, ações militares sem aprovação explícita do Congresso suscitam contestações constitucionais e geram questionamentos sobre a transparência democrática e o controle civil sobre as forças armadas. A War Powers Resolution de 1973, aprovada em resposta ao desgaste da Guerra do Vietnã, exige que o presidente notifique o Congresso em até 48 horas após iniciar qualquer operação militar e retire as tropas em até 60 dias, caso não haja autorização legislativa.

Na prática, porém, esta resolução tem sido ignorada ou minimamente cumprida, em grande parte porque o próprio Congresso se esquiva do ônus político de deliberar sobre o uso da força.

O novo ataque americano ao Irã, particularmente contra alvos de alto valor estratégico como Fordow, se confirmadas, como afirma Trump, deve reacender esse debate com força total. Além de provocar reações internacionais, geraria contestação nos tribunais, mobilização no Congresso e divisão na opinião pública.

Não é difícil imaginar um cenário em que a decisão de atacar seja vista, por amplos setores da sociedade, como um ato unilateral e inconstitucional, uma usurpação do poder de guerra por parte do Executivo.

Em suma, embora Trump tenha à disposição os instrumentos legais e políticos para ordenar uma ação militar sem nova AUMF, como já demonstrou no passado, fazê-lo abre uma nova frente de desgaste doméstico.

O custo político de um ataque desse tipo pode se provar tão alto quanto o militar. Afinal, quando o presidente ignora os limites constitucionais, não está apenas testando o sistema internacional: está minando, por dentro, as fundações da própria democracia que deveria proteger.