Priscila Yazbek
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Priscila Yazbek

Correspondente em Nova York, Priscila é apaixonada por coberturas internacionais e econômicas — e por conectar ambas. Ganhou 11 prêmios de jornalismo

Intervenções de Trump despertam debate sobre capitalismo de Estado nos EUA

Participação na Intel, golden share na US Steel e redução de preços da Pfizer levantam questionamentos sobre transição dos EUA de uma economia capitalista para um modelo com maior presença do governo

Ilustração de Donald Trump segurando uma nota de dólar com seu rosto
As investidas do governo de Donald Trump no setor privado têm provocado discussões nos Estados Unidos sobre um flerte da administração com o capitalismo de Estado  • Ilustração gerada por IA
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As investidas do governo de Donald Trump no setor privado têm provocado discussões nos Estados Unidos sobre um flerte da administração com o capitalismo de Estado, modelo econômico criticado por liberais e integrantes da direita que repudiam qualquer tipo de intervenção estatal.

As medidas, que vão da participação acionária na Intel e na mineradora MP Materials até a golden share na US Steel e a pressão sobre a Pfizer para redução de preços, indicam que o segundo mandato do republicano está levando os EUA a passar por uma transição de uma economia puramente capitalista para uma economia mais engajada pelo Estado.

"É curioso que um país com a tradição de excelência institucional e de desenho de políticas liberais adote práticas comuns apenas em países emergentes, notadamente os latinos, como o Brasil, onde o capitalismo de laços — com relações intrincadas entre público e privado — é uma realidade há muitos anos e com resultados negativos", afirma Gabriel Barros, economista-chefe da ARX Investimentos.

Nesta terça-feira (30), Donald Trump anunciou um acordo com a farmacêutica americana Pfizer para vender remédios por valores inferiores aos praticados no mercado europeu.

A empresa oferecerá descontos de 50% em um site voltado ao consumidor chamado TrumpRx e em troca ficará isenta das tarifas de 100% sobre produtos farmacêuticos, que entraram em vigor nesta quarta-feira (1).

O presidente americano e seus assessores sugeriram que as tarifas foram usadas como uma manobra de negociação para forçar as empresas a reduzir os preços de seus produtos.

Em agosto, Trump anunciou que adquiriria uma participação de 10% na fabricante de chips Intel. O acordo foi feito depois de o republicano pedir a renúncia do CEO Lip-Bu Tan Tan, alegando que suas participações em empresas chinesas ameaçavam a segurança nacional.

Tan se encontrou com o presidente na Casa Branca e o problema foi resolvido depois que ele ofereceu ao governo americano uma participação acionária na companhia.

O governo americano deveria doar US$ 8,9 bilhões à gigante de tecnologia, como determinado pela Lei de Chips, sancionada pelo ex-presidente Joe Biden. O valor era condicionado a uma série de compromissos da empresa para produzir chips nos Estados Unidos. Mas com o acordo, o governo Trump eliminou essas proteções e liberou os recursos em troca da participação acionária.

O movimento foi considerado a maior intervenção em empresas privadas desde quando o governo dos EUA interveio para salvar a Chrysler e a General Motors, no contexto da crise financeira de 2008. Refletindo a inversão de papéis, políticos de esquerda, como o senador Bernie Sanders, elogiaram o plano.

Na última quarta-feira (24), as ações da Intel dispararam após relatos de que a empresa havia conversado com a Apple sobre um possível investimento. A Nvidia anunciou que investiria US$ 5 bilhões na fabricante de chips e o SoftBank cerca de US$ 2 bilhões.

Os movimentos levaram investidores em Wall Street a questionar se as empresas estavam dispostas a investir na Intel — que vinha enfrentando dificuldades financeiras — para conquistar a simpatia do governo.

No jantar com CEOs de big techs na Casa Branca, no início de setembro, Trump pediu que os executivos dissessem quanto planejavam investir nos EUA.

Como alunos que respondem a uma chamada em uma sala de aula, empresários da Apple, Microsoft, Google, Meta e Oracle mencionaram, um por um, os aportes de bilhões de dólares e rasgaram elogios ao presidente.

Em julho, o Pentágono anunciou a compra de US$ 400 milhões de ações da mineradora de terras raras MP Materials, se tornando seu maior acionista. A MP é proprietária da única mina operacional de terras raras na Califórnia. Os minerais de terras raras são componentes críticos para fabricação de equipamentos de defesa e estão no centro da disputa entre Estados Unidos e China.

Em junho, para obter um aval para comprar a mineradora americana US Steel, a japonesa Nippon Steel concordou em conceder ao governo Trump uma golden share na companhia.

A ação de classe especial confere ao acionista o poder especial de veto. O governo já teria inclusive usufruído de sua ação para bloquear o plano da mineradora de interromper a produção de uma fábrica em Illinois que emprega 800 trabalhadores, segundo informou o Wall Street Journal na semana passada.

Trump também concordou em aliviar as restrições à exportação de chips da Nvidia para a China em troca de um pagamento de 15% da receita das vendas ao governo dos EUA, deixando de lado as preocupações com a guerra comercial e o fornecimento de tecnologia de ponta aos chineses.

As empreitadas corporativas do governo também se estendem a outros países. Trump usou a sua guerra tarifária para pressionar o Japão e a Coreia do Sul a concordarem em investir centenas de bilhões de dólares em um fundo que será controlado pelos Estados Unidos. O acordo permite que Trump invista o dinheiro a seu critério durante sua presidência.

Conforme reporta o jornal  The New York Times, Howard Lutnick, secretário de Comércio e o principal responsável pelas negociações comerciais de Trump, teria sido o arquiteto desses planos, que incluem a criação do chamado Acelerador de Investimentos, o fundo que receberá o capital estrangeiro proveniente dos acordos e que permitirá negociar participações acionárias em empresas.

Economistas falam sobre uma aproximação calculada em direção ao capitalismo de Estado e até uma demonstração oportunista de extorsão corporativa, como defendeu o professor de Harvard Greg Mankiw, que liderou o Conselho de Consultores Econômicos no governo do presidente George W. Bush no Times.

“Parece uma espécie de extorsão", em que o governo aponta "você tem um bom negócio aqui, eu não gostaria que nada acontecesse com ele".

“O que se vê é uma mudança de paradigma: um governo republicano que sempre pregou o laissez-faire agora age como um sócio duro e intervencionista, escolhendo setores e empresas que considera estratégicos”, avalia Thiago de Aragão, CEO da Arko Internacional.

Para Aragão, a lógica não é apenas econômica, mas também geopolítica. “Trump percebeu que, ao segurar empresas pelo bolso, ele amplia o raio de ação da Casa Branca tanto na política doméstica quanto nas negociações internacionais”, conclui.

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