Os diálogos de Delfim Netto com um repórter: “O Brasil não sabe onde está”
Ex-ministro era discreto e falava pouco sobre a vida pessoal, mas discorria sobre sua experiência como consultor nos mais diversos governos
Antonio Delfim Netto era um homem de fala doce e rápida — e aspas fortes. Sempre que se dispunha a falar, o que não foi em poucas ocasiões, animava um jornalista com a afiação de suas palavras.
Na última vez em que conversamos, em 2021, cravou: “O governo Bolsonaro acabou”. Afirmou ainda que “Lula não é de esquerda”, além de que seria eleito e faria um governo pragmático.
Depois desse papo, Delfim se isolou.
Neia, sua secretária, dizia que ele estava passando o resto da pandemia no interior e evitando entrevistas. Anteriormente, era ele quem atendia ao telefone fixo.
Na pandemia, sempre que eu telefonava, o ex-ministro perguntava: “Está se escondendo do bichinho?”, em referência ao coronavírus.
“Eu estou escondido embaixo da mesa”, ria-se. Não atendeu mais depois desse papo.
Eu havia conhecido Delfim antes da pandemia, ainda como repórter na Veja.
No nosso primeiro encontro, fui recebido para um café numa bela casa de pedra no Pacaembu, separada por algumas casas de onde moro, numa sala decorada por caricaturas publicadas em jornais nas paredes. Foi ali que constatei com meus próprios olhos sua influência eterna em qualquer que seja o governo.
Reclamei a ele sobre a falta de acesso a uma figura importante do governo de Jair Bolsonaro, que não sei por que cargas d’água não falava comigo. Ele sacou o telefone de fio e pediu para a secretária conectá-lo com a figura.
“Alô, aqui é o Delfim. Cê tá bom? Estou com um jovem e bom repórter da Veja aqui, o Victor Irajá. Recebe ele para um café? Passa seu número”, disse, alcançando uma caneta e um papel do alto de sua barriga.
Alguns segundos depois, veio o esporro: “O fixo não; passa o celular, porra!”, bradou, pronunciando o erre com seu típico sotaque de neto de imigrantes italianos.
Dias depois, fui recebido pela figura.
Para se ter ideia da influência de Delfim: em 2015, o ministro Paulo Guedes me contou que foi convidado por ele para um jantar com a presidente Dilma Rousseff.
Guedes levou a Dilma a necessidade de se reformar a Previdência e chegou a ser cotado para assumir o posto de ministro da Fazenda, apesar das ditas e constatáveis diferenças de pensamento entre Guedes e Dilma.
A história confirma: o papo não deu em nada, mas é a prova do trânsito de Delfim com as figuras mais proeminentes da República.
No dia em que o conheci, Delfim me perguntou sobre minha vida. Contei da minha constante divisão entre São Paulo e Rio. Desde então, não houve uma sequer ligação em que ele não perguntasse se eu estava na Cidade Maravilhosa ou em São Paulo, mesmo anos depois.
O consultei durante boa parte da pandemia, para escrever em tempo real sobre a história econômica de um tempo turvo — e de tempos turvos, Delfim sabia bem e participou ativamente. Foi ministro da Fazenda durante a ditadura e um dos responsáveis por assinar o Ato Institucional 5, o mais duro do regime militar.
Metamorfoseou-se e virou um importante conselheiro de Lula, Dilma, Temer e membros do governo Bolsonaro, a quem criticava de forma dura.
Num dos papos comigo, para uma das matérias de capa da Veja das quais mais me orgulho de ter assinado, disparou: “O país, dessa forma, não cresce. As perspectivas razoáveis são destruídas pelo comportamento errático do presidente, que anda de motocicleta. Ele é um provocador que não ajuda a restabelecer o equilíbrio”, disse na ocasião.
Para esta reportagem, assinada com o então editor Carlos Eduardo Valim e a editora-assistente Larissa Quintino, ouvi também os ex-presidentes Michel Temer e Fernando Henrique Cardoso; e também os ex-ministros Pedro Malan e Henrique Meirelles para tentar entender a história enquanto ela transcorria.
Tirador de sarro de si próprio, dizia não gostar de exercícios físicos. Era discreto e falava pouco sobre a vida pessoal, mas discorria sobre sua experiência como consultor nos mais diversos governos. Um de seus programas prediletos era almoçar na cantina Roma, em Higienópolis — o que, relatou, sentia muita falta durante a pandemia.
Quando repórter na Veja, fui ensinado pelo meu primeiro chefe, o então editor de Economia, Felipe Carneiro, a escrever em ‘vejês’. Fui ensinado sobre a estrutura dos textos da revista e apresentado a, digamos, um conceito: o “voo”.
O voo, discorreu Carneiro, era algo enfiado no texto que faria o leitor chegar à última linha pensando: aprendi alguma coisa hoje. Entre citações, passagens literárias e da cultura, algo que fizesse o leitor refletir. Desde então, conceitos da literatura e paralelos históricos viraram meus “voos” prediletos.
Para ter acesso a eles, três figuras viraram minhas fontes prediletas: os ex-ministros Delfim Netto, Marcílio Marques Moreira e Mailson da Nóbrega, meu “colega” como colunista na revista.
Os ex-ministros viraram meus contadores de histórias prediletos, responsáveis por contar a um jovem paralelos que fariam sentido para enriquecer uma reportagem.
Foi de Delfim, por exemplo, que vieram os detalhes e bastidores da briga entre o ministro da Fazenda Pedro Malan e o Clovis Carvalho, então ministro do Desenvolvimento de FHC, para discorrer sobre a disputa entre Paulo Guedes e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, durante o governo de Jair Bolsonaro — e por aí ia.
Depois que assumi o Radar Econômico, Delfim virou fonte de informação sobre a sociedade que mantinha com outra figura tão controversa quanto ele, o ex-prefeito Paulo Maluf, na empresa de celulose Eucatex — sociedade saborosa jornalisticamente por si só. Não falava muito sobre a empresa, mas o suficiente para entender o que acontecia na companhia.
Num dos últimos papos que tivemos, Delfim cravou: “O Brasil não sabe onde está, tampouco para onde quer ir”. Se nem Antonio Delfim Netto sabia onde estava ou para onde iria, ele tinha razão. Só estava presente.