Análise: Burocracia da Receita vira bomba por incapacidade do governo Lula
Gestão contratou uma crise sem precedentes que baseia-se na desconfiança da população no governo
Dizia Millôr Fernandes que o mundo só é chato em duas ocasiões: na guerra e na paz. Entre as coisas mais desinteressantes que existem, talvez estejam instruções normativas da Receita Federal. E, sobre aspectos chatos e técnicos, é importante manter a sobriedade.
Preâmbulo feito, assuntos chatos e técnicos: a Declaração de Operações com Cartões de Crédito (Decred) foi instituída em 2003, a possibilitando à Receita Federal receber informações sobre transações feitas por pessoas físicas e jurídicas, regulamentando uma legislação proposta pelo então secretário de Receita Federal, Everardo Maciel, em 2001.
O próprio governo federal admite, por meio de seu site oficial: “Os bancos tradicionais e diversas outras instituições financeiras já repassam informações sobre movimentações ao órgão desde 2003. As transações financeiras, agregando as diversas modalidades, inclusive via Pix, são informadas à Receita Federal”.
O que aconteceu, então, a partir de mais uma instrução normativa da Receita Federal: a adequação do regramento da Decred à também maçante plataforma e-Financeira, que possibilitou, segundo o próprio governo, a gestão pública a “captar dados de um maior número de declarantes, alcançado valores recebidos por meio dos instrumentos de pagamento, operações hoje comumente utilizadas no mercado”.
Segue: a obrigatoriedade de transferência das informações cabe às instituições financeiras e meios de pagamento regulados pelo Banco Central, Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Superintendência de Seguros Privados (Susep) e Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc).
À CNN, Everardo Maciel resumiu a nova crise. “Se deu um excesso de publicidade a uma informação que já existe acesso. Qual a novidade? Não existia uma ferramenta chamada PIX. É acesso a informação do PIX, rotineiro, nada novo”.
“É apenas um instrumento em cima de uma regra que existe há 24 anos. Quando o Drex aparecer, vai acontecer a mesma coisa. É apenas um instrumento que passou a ter uma ferramenta interna da Receita”, afirma.
O que aconteceu, então?
A partir de uma modificação de regramento burocrática, técnica e cotidiana criou-se um grande infortúnio para o governo — e o problema, novamente, é a comunicação.
Com dificuldade de comunicar uma banalidade técnica, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva contratou uma crise sem precedentes que baseia-se na desconfiança da população no governo.
Não foram poucos os debatedores da nova ágora, as redes sociais, que compararam a nova lambança à empreitada do governo para dourar a pílula acerca da “taxação das blusinhas” — ou, chato e técnico, a aplicação de uma alíquota de 60%, com um desconto de US$ 20 no valor do tributo e a incidência de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, ICMS, de compras internacionais de até US$ 50.
Culpa da própria comunicação do governo e desafio para Sidônio Palmeira, o novo chefe da Secretaria de Comunicação do Palácio do Planalto.
Na ocasião, a primeira-dama, Rosângela da Silva, escreveu: “Taxação é para as empresas e não para o consumidor”. Como acreditar, então, que agora seria diferente?
E é.
Mas, em meio à descrença da população e à falta de credibilidade da gestão pública, a narrativa ganhou as redes.
Sem publicar mentiras, mas insinuações infundadas, vale dizer, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) fez do limão uma limonada: compilou em vídeo bem produzido sobre as mudanças recentes no regramento sobre as fiscalizações do Pix. E o governo, erroneamente, volta atrás em sua atualização de regras para a fiscalização de novos meios de pagamento.
Resultado: mais de 200 milhões de visualizações no vídeo.
Candidato à presidência da República em 2018, o fundador do partido Novo João Amoêdo resume a decisão errônea do governo: “A decisão equivocada do governo Lula de revogar a Instrução Normativa da Receita acaba por dividir os brasileiros em três grupos: os que concluem que temos um governo fraco, refém de fake news; os que acreditam que temos um governo mentiroso, pois não era fake news; e aqueles que acham que o governo é fraco e mentiroso”.
Continua ele: “A medida era uma mera burocracia para atualizar o monitoramento da Receita – que sempre ocorreu – às inovações bancárias, como o Pix e as fintechs. O resto era desinformação”.
Em meio a uma guerra que tem como pano de fundo a informação e seu uso, o governo mostra-se refém de sua própria incapacidade de comunicar-se de forma clara sobre os mais triviais assuntos. E é também de Millôr uma das mais célebres definições sobre os chatos: indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós temos nele. O problema da Receita: hoje, há mais contribuintes interessados nela do que ela nos contribuintes. E a culpa é dela própria.