É preciso frequentar autoescola? Evidências que o governo não mostrou

Em 2007, o então deputado federal Celso Russomanno criou um projeto de lei para obrigar as autoescolas a oferecer aulas noturnas. A justificativa era que dirigir à noite “exige precauções adicionais, atenção redobrada” e que, por isso, quem quisesse tirar carteira precisava passar por esse treinamento “para não vir a fazê-lo apenas quando [a Carteira Nacional de Habilitação (CNH)] já lhe tiver sido concedida”. A lei foi aprovada em 2010 e ficou vigente até 2021. O detalhe é que essa iniciativa, por mais bem-intencionada que pareça, nunca teve qualquer base sólida. Ou seja, por mais de uma década, os infelizes aprendizes de motorista foram obrigados a gastar tempo e dinheiro com algo sem qualquer comprovação de eficácia.
Lembrei desse episódio diante da recente discussão levantada a partir do projeto do Ministério dos Transportes de abolir a obrigatoriedade do treinamento em autoescola. O candidato ainda precisa passar na prova teórica e na prática, mas, se provar que sabe dirigir e conhece as regras, não interessa como aprendeu.
Achei curioso — e sintomático, para falar a verdade — que a justificativa para tal proposta tenha sido baratear o custo e ampliar o acesso da população à CNH. “O valor do processo para obter a CNH, que ultrapassa os R$ 3 mil, [o] torna inacessível”, diz o site do ministério. “Prova disso é que mais da metade da população (54%) não dirige ou dirige sem habilitação.” O argumento é péssimo, convenhamos. Quer dizer que, mesmo se fosse algo essencial para evitar acidentes de trânsito, deveríamos sacrificar a segurança em nome do maior acesso?
Talvez seja coincidência, talvez seja sorte, mas, desta vez, os dados estão do lado do governo.
A segurança no trânsito é uma preocupação no mundo todo, por isso diversos estudos são realizados por cientistas de várias áreas para encontrar meios de reduzir o número de acidentes. Treinamentos antes de tirar carta, reciclagens após a habilitação, retreinamento para motoristas mais velhos, uso de simuladores, intervenções comportamentais — a lista é grande. E uma das vantagens de haver centenas de experimentos é que, depois de algum tempo, é possível reuni-los em revisões sistemáticas, obtendo dados ainda mais robustos. E, quando isso é feito com relação à eficácia do treinamento de motoristas antes de tirar a carteira, conclui-se que não existe evidência de que qualquer tipo de autoescola previna acidentes em qualquer lugar do mundo onde isso já foi testado.
A explicação mais provável é que a maioria absoluta dos acidentes, embora na maior parte das vezes relacionada ao motorista, não ocorre por pouca habilidade ao volante. De longe, a principal entre todas as causas é a falta de atenção, que leva o condutor a não observar a sinalização, não manter distância segura, mudar de faixa sem observar o entorno, não reagir a tempo diante de imprevistos. Um dos grandes vilões, nesse caso, é o uso do celular enquanto se dirige. Excesso de velocidade, uso de álcool, sonolência e desrespeito ao semáforo são outras causas campeãs. Nenhum desses fatores, fica óbvio, tem a ver com falta de conhecimento ou de treino.
Mesmo com essa massa de evidências, o governo optou por acenar com um argumento populista, em vez de apresentar dados. Mas, ao preferir agradar ao público a instruí-lo, perdeu a oportunidade de defender sua proposta com um argumento muito mais sólido.