Comportamentos excêntricos se multiplicam como estratégias de pertencimento
Alguns comportamentos, totalmente dependentes do contexto social, vêm sendo confundidos com identidades, no sentido clínico do termo - o que é um grande equívoco

Eu sei que você tem alguns pensamentos, digamos, estranhos. Todo mundo tem. Pode ser que desconfie de que uma entidade espectral surja em sua cozinha à noite; talvez fraqueje na convicção de que o homem pisou na Lua; quem sabe receie que uma praga realmente faça chover toda vez que lava o carro. A gente não fala sobre essas coisas porque, no fundo, não nos importamos muito com elas. Tais pensamentos são desencorajados pela realidade da vida cotidiana e – principalmente - pelas interações com as outras pessoas, porque elas não compartilham de tais ideias.
Imagine, no entanto, o que aconteceria se algumas de nossas ideias mais esquisitas fossem validadas coletivamente? De repente encontramos um grupo que não só acredita na mesma coisa, mas ainda reforça a nossa crença, compartilhando experiências semelhantes e valorizando relatos minuciosos. Aquela desconfiança que era desencorajada passa a ser alimentada pelos outros, que nos oferecem compreensão e apoio. Rapidamente eles se transformam em “nosso” grupo. Cria-se uma identidade, um senso de pertencimento e a acolhedora sensação de não estarmos sozinhos.
Isso ocorre porque a necessidade humana de conexão é muito forte. Nós sobrevivemos como espécie por conta do impulso de nos agregarmos: provavelmente quanto mais apreço por estar inserido na tribo, maior a chance de passar adiante nossos genes – o que gravou profundamente em nós esse instinto primal, essa fome por pertencimento.
Não é de hoje que as pessoas com interesses particulares dão um jeito de se encontrar e organizar seus grupos, seja de ferromodelismo ou simulação de batalhas medievais, seja de swing ou escatologia. Até há algumas décadas, contudo, as práticas precisavam ultrapassar certo limiar de aceitação para atingir uma massa crítica de pessoas que viabilizasse a criação e manutenção do grupo – cujo crescimento era, ainda assim, limitado. Com o advento da internet, e particularmente das redes sociais, esses obstáculos praticamente despareceram. Qualquer ideia ou desejo que se tenha, por exótico ou bizarro que seja, pode ser tema de uma comunidade online, um fórum, um grupo de troca de mensagem.
Um sujeito um dia se sente tão afeiçoado aos cachorros que passa em sua mente agir como um. Se antes ele se sentava num canto e esperava a vontade passar, hoje com dois cliques ele encontra um monte de gente fazendo a mesma coisa. Uma pessoa quer tanto exercer a maternidade que pensa em tratar um boneco como filho. Na mesma hora descobre uma plateia inteira agindo da mesma forma, pronta para encorajar sua atitude.
O problema é que esses comportamentos, totalmente dependentes do contexto social, vêm sendo confundidos com identidades, no sentido clínico do termo - o que é um grande equívoco. Essas pessoas não se identificam “como” cachorros, mas se identificam “com” cachorros. Porque quem acha que de fato é um bicho fica louco como o rei Nabucodonosor, comendo capim, dormindo ao relento, sem cuidados. E, claro, não usa celular para postar nas redes sociais seu comportamento. Da mesma forma, quem faz festa para bebês reborn sabe que são apenas bonecos; se agem de forma convicta e convincente não é por falta de juízo, mas por excesso de plateia. Essa confusão tira a legitimidade das pessoas que realmente apresentam transidentidades, como se elas livremente escolhessem se identificar com gêneros diferentes de seu sexo biológico por causa do TikTok. Obviamente não é o caso.
Numa sociedade que caminha para a tolerância e aceitação – felizmente, diga-se – já não se admite que as pessoas sejam discriminadas ou julgadas por se expressarem como bem entendem. Talvez isso signifique que haverá cada vez mais gente agindo de forma não convencional. Tudo bem. Mas se não separarmos as questões sérias da excentricidade corremos dois riscos: tratar os excêntricos com seriedade demais, e os pacientes sem a seriedade devida. O que, no fim, não é bom para ninguém.