Fechou os olhos o homem que sabia olhar

Foi no SESC Pompeia, em São Paulo, que pisei pela primeira vez na Amazônia — ela era em preto e branco. Não se ouvia o zumbido dos insetos nem o canto das aves, mas cada folha suspensa, cada rosto indígena, cada água parada de seus igarapés falava mais do que mil vozes. A floresta surgia em prata e sombra, e o seu guia não era um xamã, era um fotógrafo: Sebastião Salgado. Ali, diante da sua exposição Gênesis, compreendi que a imagem pode ser oração e que a lente, quando dirigida por uma alma como a dele, é capaz de testemunhar o sagrado.
Salgado não fotografava coisas — ele ouvia os silêncios do mundo e os devolvia em imagens. Quando retratou os Trabalhadores, não fez uma denúncia, fez um altar. Elevou os que carregam o mundo nas costas à dignidade dos mártires. Nos Êxodos, ofereceu aos migrantes sem nome um nome coletivo: humanidade. E em Gênesis, seu último grande épico visual, deu à Terra um rosto de origem, como quem volta ao ventre e descobre, ali, uma chance de recomeço.
O que ele via, nós não víamos. Ou víamos, mas não sabíamos nomear. Sua fotografia era uma forma de nos alfabetizar para o sofrimento alheio, para a beleza ameaçada, para a resistência dos invisíveis. Seus retratos não apenas mostravam pessoas: devolviam-lhes o rosto, a dignidade, o tempo. E, paradoxalmente, era no preto e branco que suas imagens mais falavam de cor: da cor da pele, do barro, da fuligem, do sol refletido nos olhos de quem não tem nada além do próprio corpo.
Mas Salgado também era semeador. Com Lélia, sua companheira de tudo, reflorestou com árvores o que o mundo havia desflorestado com ganância. A Mata Atlântica de sua infância em Aimorés ressurgiu verde de novo sob o cuidado de quem sempre viu mais do que havia. E foi este mesmo gesto de restauração que empreendeu na arte — mostrar que há ainda mundos por salvar, rostos por conhecer, causas por tocar.
Hoje, Sebastião fechou os olhos. Mas o mundo não ficou mais escuro. Porque nos deixou sua luz. Uma luz feita de sombra. Uma luz feita de rosto. Uma luz feita de mundo. Ele ensinou que olhar é um verbo de escuta. E que fotografar pode ser um ato de amor — o mais silencioso e, ao mesmo tempo, o mais gritante. Que sua travessia, agora, seja feita como as que registrou: com coragem, com verdade, com a alma exposta à claridade e ao mistério.