José Manuel Diogo
Coluna
José Manuel Diogo

O homem de lá e de cá. Presidente da APBRA, diretor da Câmara Luso Brasileira em Lisboa. Professor universitário no IDP em Brasília. Escritor. Especialista em relações luso-brasileiras

O Futuro da Verdade

O que nos deve preocupar mais não é um nome, um escândalo ou uma fotografia retirada de um arquivo público. É o instante em que a verdade deixa de ser um terreno comum e passa a ser um material editável antes de chegar ao cidadão

Donald Trump e Jeffrey Epstein
Donald Trump e Jeffrey Epstein  • Reuters
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Na entrevista recente à CNN, o cineasta alemão Werner Herzog foi direto ao ponto: não caminhamos para um tempo de mentira, mas para um tempo em que a própria ideia de verdade se torna irrelevante, dissolvida num fluxo incessante de imagens, versões e recortes.

É a partir dessa advertência que o episódio Epstein, envolvendo o Departamento de Justiça dos Estados Unidos, ganha uma gravidade maior do que parece à primeira vista. A remoção de imagens de Donald Trump dos arquivos públicos ligados ao caso não aparenta ser apenas um erro administrativo ou um deslize político. Descreve um sintoma perfeito do mundo que Herzog descreve: um mundo em que a verdade não é negada frontalmente — é editada, atenuada, recortada até perder densidade.

Herzog insiste que o perigo não está na falsificação grosseira, mas na saturação. Quando tudo pode ser ajustado, removido ou “contextualizado” a posteriori, a verdade deixa de ser um chão comum e passa a ser um artefacto narrativo. Arquivos públicos, nesse cenário, deixam de funcionar como memória coletiva e passam a operar como instrumentos de gestão do desconforto.

O caso Epstein é estrutural precisamente por isso. Não porque prove algo, mas porque expõe conexões entre poder, privilégio e opacidade. Ao retirar uma imagem, o Estado não protege ninguém — enfraquece o próprio pacto democrático, que se baseia na ideia de que o cidadão tem acesso ao quadro completo, mesmo quando ele é incómodo.

O argumento da “despolitização” da informação, usado para justificar a remoção, revela uma ingenuidade perigosa. Como Herzog sugere, já não vivemos num mundo onde a disputa é entre verdade e mentira, mas entre visibilidade e invisibilidade. Quem controla o arquivo controla aquilo que pode ser pensado.

Há quem diga que se trata de um detalhe menor. Herzog responderia que é assim que as grandes erosões começam: não com censura explícita, mas com pequenos gestos técnicos que, somados, tornam o real indistinto. A democracia não entra em colapso quando a verdade é proibida, mas quando deixa de importar.

No fim, o problema não é Trump, nem Epstein. É o precedente silencioso. Quando a justiça passa a editar a memória para evitar ruído, já não estamos a administrar factos — estamos a administrar perceções. E, como Herzog alerta, um mundo onde a verdade se torna apenas mais uma versão é um mundo que já perdeu o seu eixo moral.