Miguel Nicolelis

Mãe é mãe: uma ode para Giselda

Mãe segurando a mão do filho  • Freepik
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A maior dificuldade de uma pena de ocasião, como é o meu caso, é escolher o melhor tema possível para a sua coluna mensal que, por ser tão esporádica, sempre corre o risco de perder o “timing” dos eventos principais que nortearam os últimos 30 dias do mundo caótico que nos cerca. Como eu ainda não aderi até hoje, nem pretendo no futuro, à prática de consultar os atuais Oráculos da modernidade, cujos nomes tão sem imaginação– ChatGPT e Gork, arghh! - certamente horrorizariam a Pitonisa do Templo de Apolo em Delfos, restou-me realizar às pressas uma meta-análise, tão em voga no que restou do mundo acadêmico, dos assuntos que poderiam me inspirar a escrever, numa tarde de sábado chuvosa, sem jogo do Palmeiras, uma coluna digna de nota.

Mergulhado em dúvidas até tarde da noite, eu confrontei as opções mais óbvias. Seria a coluna voltada para o mais novo apagão europeu, que deixou portugueses e espanhóis, e um punhado de franceses, boquiabertos com a sua descoberta de uma das mais flagrantes fragilidades da sociedade elétrico-eletrônica-digital do século XXI? Ou talvez eu deveria focar no mergulho às cegas dos Estados Unidos no abismo do autoritarismo sem limite que, pasmem vocês, é capaz de desaparecer com estudantes estrangeiros em plena luz do dia, na sanha cruel de deportar em massa tanto imigrantes, residentes permanentes, ou até mesmo crianças nascidas nos EUA, e portanto, cidadão americanos, à margem de qualquer processo legal ou mesmo de decisões judiciais, incluindo as proferidas pela Suprema Corte do país? Ou, como cientista profissional, seria meu dever me ater a forma como este mesmo governo americano resolveu perseguir universidades e matar o ganso dos ovos de ouro que desde o final da Segunda guerra Mundial financiou o desenvolvimento da ciência americana?

Apesar da evidente relevância de cada uma destas propostas temáticas, nenhuma delas me cativou. Próximo do desespero que todo escritor já experimentou ao se deparar, por minutos a fio, “mano a mano” com uma folha de papel (ou tela) em branco, de repente a resposta as minhas súplicas foram respondidas; provavelmente por dádiva de San Genaro ou Nossa Senhora da Achiropita, como concessão caridosa a um ateu fervoroso que, depois de décadas de exílio, finalmente retornou nesta última semana ao bairro onde nasceu – o grande Bixiga – para uma palestra, no meio da rua, durante a Feira do Livro da Rua Rocha.

Eliminadas todas as dúvidas e reconhecendo a devida ordem de prioridade, depois deste sopro de inspiração divina, eu abandonei todas as causas militantes propostas acima em prol de dedicar esta coluna a maior cúmplice de toda a minha vida, incluso o período intra-uterino. Perspicaz como você deve ser, meu caro leitor, você já deve ter adivinhado que daqui para frente eu vou me limitar a falar apenas dela; a minha mãe! A escritora infanto-juvenil brasileira mais criativa e prolífica deste lado da Via Láctea.

Com mais de 60 anos de literatura, e ainda ativa literariamente, do alto das suas 86 bem vividas primaveras, Dona Giselda Laporta Nicolelis, como só eu tenho permissão para chama-la, há tempos merecia esta homenagem do seu filho predileto (que alguém não nos ouça). Mesmo porque, afinal de contas, hoje é dia das mães. E como ela sempre faz questão de repetir, em alto e bom som, sempre que existe alguma dúvida sobre quem vai ter razão no final das contas, mãe é mãe!

Com a devida vênia, publique-se e cumpra-se o que Dona Giselda decretou! Assim dizia meu pai, o meretíssimo juíz Angelo Brasil Nicolelis, ao alegar ter conseguido inserir apenas um punhado de sentenças em qualquer conversa com Dona Giselda nos seus 60 anos de casamento!

Desde a minha infância, Dona Giselda sempre foi o meu porto seguro e fiel escudeira. Se a tal alma gêmea realmente existe – os cânones científicos que me perdoem – Dona Giselda é a minha. Seja quando ela me buscava, todos os dias, na saída do Grupo Escolar Napoleão de Carvalho Freire, com o seu possante Fusca azul-marinho, seja durante todo o meu exílio voluntário de quase quatro décadas nos EUA, quando religiosamente, ano após ano, todas as segundas-feiras ela me remetia, pelo correio, um pacote contendo todas as primeiras páginas do jornal da semana anterior, para que eu “não perdesse contato com o lugar de onde eu vinha”.

Aliás, tudo que eu precisei na vida para sobreviver ao mundo acadêmico eu aprendi com Dona Giselda que, como uma das primeiras mulheres jornalistas, formada pela Faculdade Cásper Líbero nos anos 1950, e depois como escritora profissional nos anos 1960, desafiou toda uma série de tabus para se estabelecer, única e exclusivamente pelo seu talento mágico de contar estórias, as mais diversas, bem como as mais desafiadoras, numa linguagem que qualquer criança pudesse entender e se apaixonar, como uma das maiores escritoras infanto-juvenis do Brasil de todos os tempos.

Mais de 130 livros publicados, inclusive um com seu primogênito, dedicado a apresentar a neurociência a seus leitores infanto-juvenis, chegaram as mãos de milhões de crianças que nunca mais a esqueceram. Prova disso é que, desde que eu comecei a publicar os meus livros no Brasil, 15 anos atrás, em todos os meus lançamento ou noites de autógrafos Brasil afora eu sou brindado com a presença de alguns membros do fiel exército de leitores de Dona Giselda, que depois de mais de meio século trazem seus livros autografados por ela para que eu também possa assiná-lo devidamente como, “O Filho de Dona Giselda”!

Crescendo ao lado dessa verdadeira maga, eu também aprendi o que era o significado da palavra resiliência, e o valor de viver toda uma vida apaixonada pela sua arte. Quando eu decidi ser cientista e perseguir a quimera, à época considerada quase impossível, de registrar tempestades neurais, foram as matriarcas da minha família que me apoiaram incondicionalmente. À frente delas, Dona Lygia – minha avó materna – e Dona Giselda que entre lágrimas e abraços me mandaram correr mundo, mas jamais me esquecer de onde eu tinha vindo.

Tendo acompanhado de perto, como escudeiro fiel, Dona Giselda vencer todos os obstáculos impostos a uma mulher que queria viver apenas de literatura no Brasil dos anos 1970, tudo ficou mais fácil para mim. Afinal de contas, sob o mesmo teto vivia alguém com coragem, tenacidade e inquietude mais do que suficientes para desafiar o impossível e se dar bem!

Durante todas as décadas de convívio com ela, algo que sempre me emocionou foi a generosidade de Dona Giselda em atender todos os seus leitores, não importasse onde, a que horas, e em que circunstâncias. Por exemplo, eu me lembro que durante a minha infância, quase todas as noites, Dona Giselda deixava a mesa do jantar para atender telefonemas de seus leitores mirins que também inundavam as suas tardes e noites de autógrafo por todo estado de São Paulo e pelo Brasil afora. Durante toda sua carreira, Dona Giselda fez mais do que jus ao lema que “todo artista tem que estar onde o povo está”. Ela viveu esta missão com cada célula do seu corpo.

Eu ainda poderia contar muitos causos e passagens impagáveis que vivi ao lado da minha mãe nestes mais de 64 anos de íntima convivência. Da narrativa, que todo mundo que a conhece tem que ouvir, de que eu quase nasci prematuramente durante um banho de chuveiro, ou como ela passou boa parte da sua gravidez conversando comigo ao som de Nat King Cole na vitrola, até as nossas idas ao Chico Hambúrguer, da Avenida Ibirapuera, em Moema, todas as sextas-feiras, para tomar um banana Split só de chocolate.

Durante toda a minha vida, Dona Giselda sempre esteve na minha mente, literalmente. Um dia, durante uma aula que eu ministrava em Tóquio, eu sem querer esqueci de desligar meu telefone celular. No meio da palestra, o telefone tocou. Meio perdido, eu olhei na tela, e lá estava ela, Dona Giselda, me ligando. Sem saber o que fazer, eu atendi o telefone e imediatamente expliquei a ela que eu estava no meio de uma palestra. Enquanto eu avisava a plateia que tratava-se da minha mãe ligando do Brasil, sem perder a pose, enquanto uma sonora gargalhada reverberava no auditório, Dona Giselda replicou de imediato:

- Avise pra eles que é a sua mãe ligando. Eles vão entender, afinal de contas, “Mãe é Mãe!

Só me restou dizer. Sim senhora!

Feliz Dia das Mães!