"Tremembé": como Suzane von Richthofen prestou vestibular da prisão
Condenada a 39 anos pela morte dos pais, ela vive em Bragança Paulista com o marido e o filho; ela começou a cursar direito em instituição privada

Suzane von Richthofen voltou ao centro das atenções esta semana após a estreia de "Tremembé", série da Amazon Prime Vídeo onde ela é retratada pela atriz Marina Ruy Barbosa. Condenada a 39 anos pela morte dos pais, Manfred e Marísia, sua trajetória revela um aspecto pouco conhecido: a persistência em buscar o ensino superior.
Hoje conhecida como Suzane Louise Magnani Muniz, ela cumpre pena em regime aberto desde 2023. Aos 19 anos, a então estudante de direito confessou ter planejado o assassinato dos pais. O crime que chocou o país foi executado pelos irmãos Daniel e Cristian Cravinhos – Daniel, seu então namorado –, que desferiram golpes contra o casal enquanto dormia, em 2002.
Mas como Suzane e outros presidiários, conseguem prestar vestibular e sonhar com uma faculdade, mesmo atrás das grades?
Conforme detalhado pelo jornalista Ullisses Campbell em seu livro "Suzane Assassina e Manipuladora", a busca por conhecimento e o desejo de ascensão acadêmica permeiam diferentes fases da vida de Suzane, antes e depois do brutal assassinato de seus pais.
Antes do crime que a tornaria infame, a vida de Suzane era marcada por um ambiente familiar tenso. Campbell revela que, em meio às constantes desavenças entre Marísia e Manfred von Richthofen, Suzane encontrava um contraste no lar dos Cravinhos, percebendo-o como um "paraíso" em oposição ao "inferno" de sua própria casa.
Foi nesse cenário que a jovem traçou uma estratégia para evitar ser enviada ao exterior pelos pais, que discordavam de seu relacionamento: a aprovação no vestibular.
Com foco e dedicação intensos a um curso preparatório, ela conquistou uma vaga em direito na PUC (Pontifícia Universidade Católica) em 2002. Esse sucesso acadêmico, que encheu seus pais de orgulho, foi celebrado com um Gol dourado novinho em folha de presente, um símbolo da expectativa e do potencial que a família depositava nela, segundo Campbell.
Anos após sua condenação, Suzane von Richthofen demonstrou persistência nos estudos. A SAP (Secretaria da Administração Penitenciária) afirmou em nota à CNN Brasil que no período em que Suzane esteve sob custódia na Penitenciária Feminina 1 de Tremembé, suas aprovações em unidades de ensino superior foram obtidas por meio da nota do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) com o apoio de sua defesa.
Enem dos detentos
Esse processo é viabilizado pelo Enem PPL (Exame Nacional do Ensino Médio para Pessoas Privadas de Liberdade), um programa do Inep que permite a detentos buscarem o ensino superior. Para a inscrição e realização das provas, existe um termo de parceria entre o MEC (Ministério da Educação), o Inep e a própria SAP.
Todas as unidades prisionais do estado de São Paulo oferecem aos reclusos interessados a possibilidade de participação nos exames (Enem e Encceja - exame para certificar competências de jovens e adultos), em um período de aplicação específico para PPL. Neste ano, as provas do Enem dos detentos serão aplicadas em 16 e 17 de dezembro.
Com teste de mesmo nível do Enem regular, mas aplicadas dentro das unidades prisionais, o PPL abre caminho para programas de acesso ao ensino superior, como o Sisu (Sistema de Seleção Unificada, para vagas em universidades públicas), o ProUni (Programa Universidade para Todos, que oferece bolsas em instituições privadas) e o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil, para financiar cursos em faculdades particulares), promovendo a educação e a reintegração social.
Em 2016, Suzane foi aprovada no vestibular de administração da Universidade Anhanguera de Taubaté. Embora sua matrícula tenha sido inicialmente barrada pela 2ª Vara de Execuções Criminais, que citou possível "repulsa" acadêmica, a decisão foi revertida em segunda instância.
De acordo com Campbell no livro, o desembargador Damião Cogan defendeu o "direito inalienável do preso ao estudo", classificando a "repulsa" como "ilação subjetiva" e destacando a importância de incentivar o aprimoramento intelectual na população carcerária. Contudo, mesmo com a vitória legal, Suzane optou por não se matricular, alegando temor da hostilidade dos demais alunos.
Mais tentativas
Sua determinação persistiu. Em 2017, Suzane tentou novamente, sendo pré-selecionada para o Fies e conquistando uma das duas vagas para administração na Faculdade Dehoniana de Taubaté. Sua aprovação veio via Enem PPL.
Suzane obteve uma nota de 675,08, superando significativamente a média nacional de 519,03. Apesar do mérito acadêmico e do financiamento disponível, Suzane, mais uma vez, preferiu não efetuar a matrícula, citando o medo de represálias e hostilidade.
Mesmo após essas tentativas frustradas, a busca de Suzane por uma formação superior continuou. Ela foi aprovada no curso de gestão de turismo no IFSP (Instituto Federal de São Paulo) em Campos do Jordão, cidade próxima a Tremembé, com a inscrição realizada por uma representante do presídio.
No entanto, a instituição confirmou à CNN Brasil que ela não chegou a cursar, e sua matrícula foi cancelada por evasão, após acumular dez faltas sem justificativa.
Mais recentemente, no primeiro semestre de 2024, Suzane iniciou o curso de direito na Universidade São Francisco, uma instituição privada no campus Bragança Paulista, no interior de São Paulo. Embora sua matrícula esteja ativa, a USF diz estar impedida de fornecer informações sobre seus estudantes em função da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais,
A instituição, contudo, observa que os alunos regularmente matriculados preencheram todos os requisitos legais e condições definidas para os processos seletivos, conforme editais publicados, e estão aptos a cursarem o ensino superior.
Suzane, que na segunda-feira (3) completou 42 anos, foi procurada pela reportagem, mas não respondeu. Atualmente, ela vive em Bragança Paulista e é casada com o médico Felipe Zecchini Muniz, com quem tem um filho.
Desafio atrás das grades
Esse padrão de aprovação e posterior desistência ou evasão ressalta a complexidade entre o direito à educação e os desafios da reintegração social de figuras estigmatizadas.
Uma vez aprovados no vestibular, como Suzane, os presidiários enfrentam uma série de desafios práticos para, de fato, cursar o ensino superior.
A logística é complexa: o deslocamento diário da unidade prisional para a instituição de ensino exige um aparato de segurança considerável, com escoltas e permissões judiciais que nem sempre são concedidas ou viáveis.
Além disso, a integração em um ambiente acadêmico externo, muitas vezes hostil ou repleto de estigmas, pode ser uma barreira psicológica intransponível, como as próprias alegações de Suzane sobre o medo de represálias demonstram.
Acesso a materiais didáticos, bibliotecas e tecnologia também se torna um obstáculo significativo, transformando o direito ao estudo em uma batalha diária contra as limitações do sistema prisional e a percepção social.


