Entenda o caso envolvendo Agatha Christie e inteligência artificial

Autora, que morreu em 1976, foi "recriada" para "ministrar" um curso de escrita

Giovanna Bronze, da CNN
Vídeo com a escritora Agatha Christie criado com inteligência artificial  • Reprodução/BBC Maestro
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A autora de suspense e mistérios Agatha Christie, que morreu em janeiro de 1976, "está de volta". Mas não é ela: trata-se de uma versão totalmente digital criada por inteligência artificial para ministrar um curso online de escrita.

"Em uma iniciativa inédita, a romancista mais vendida de todos os tempos oferece a você uma oportunidade incomparável de aprender os segredos por trás de sua escrita em suas próprias palavras", descreve a página do curso online "Agatha Christie on Writing" ("Agatha Christie sobre Escrita", em tradução livre), na plataforma online BBC Maestro.

"Possibilitada pela família de Agatha, uma equipe de acadêmicos e especialistas em áudio e vídeo, é como se ela estivesse ensinando você pessoalmente", consta no site. O curso foi criado pela BBC Maestro com a Agatha Christie LTD., empresa criada pela autora em 1955 que hoje é administrada pelo bisneto de Christie, James Prichard.

No site, há a informação de que o curso recebeu "retoques de áudio e vídeo" com o auxílio de Inteligência Artificial.

Agatha Christie nasceu em Torquay, na Inglaterra, em 1890. Ela escreveu 66 romances policiais, seis livros de ficção e 150 contos. Os livros dela venderam mais de um bilhão de cópias em inglês e em outras linguagens, sendo traduzidos em mais de 100 idiomas.

Além de ficar conhecida pelas aventuras do detetive Hercule Poirot, Agatha Christie evitava o olhar público e não queria se ver como figura pública. A autora queria se manter reservada - e, agora, ela se tornou uma figura pública ao ponto de dar um curso online mesmo após sua morte.

Mortos "recriados" por IA

O episódio de Agatha Christie ocorre quase na mesma linha que o caso envolvendo a cantora brasileira Elis Regina. A cantora, que morreu em 1982, foi recriada com inteligência artificial para uma propaganda da Volkswagen em que aparece cantando "Como Nossos Pais" com a filha Maria Rita. A propaganda causou uma série de reclamações ao  Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), que abriu uma representação ética contra a campanha publicitária após consumidores questionam se é ético ou não utilizar IA com o objetivo da propaganda, apontando questões sobre o "respeito à personalidade e existência da artista, e veracidade".

O processo foi arquivado pelo Conar, mas a discussão sobre "recriar" mortos com IA segue no debate público.

Para que isso seja feito, não é necessário que a pessoa seja famosa. Para "recriar" as pessoas, segundo Rafael Gimenes das Neves, professor do curso de Ciências de Dados e Negócios da ESPM, é necessária uma base de dados extensa para conseguir reproduzir o que a pessoa falaria em vez de apenas reproduzir sua voz ou imagem.

"Para simular a voz de uma pessoa, bastaria alguns poucos minutos de áudio dessa pessoa para eu poder clonar a voz dela", explicou. "Clonar é mais fácil do que clonar os trejeitos, a forma como a pessoa raciocinava, o jeito que ela responde, etc. Por isso parece até contra intuitivo, mas clonar a voz requer menos dados do que clonar todo o trejeito de uma pessoa."

"As coisas que trazem as memórias afetivas e dão veracidade à essa simulação requerem que você conheça a pessoa e tenha acesso a todo esse material para que a gente possa clonar não só voz e rosto, mas o jeito. E é isso que é o mais difícil", continuou. "Trazer o ente querido de volta é um ponto do jeito humano de lidar com finitude."

O que diz a lei

Segundo Filipe Medon, professor de direito da FGV Rio, não existe no Brasil uma lei específica sobre isso. "Apesar desse tema já estar sendo enfrentado pela doutrina e pelas autoridades administrativas como foi o Conar no caso Elis Regina, não temos uma legislação específica sobre isso. O que existe é um projeto de lei que está tramitando que é uma reforma do código civil, que existe uma previsão específica desses casos de reconstrução digital da imagem e, consequentemente, do áudio de pessoas já falecidas, mas ainda é um projeto", explicou.

"Esse projeto vem consagrar a ideia de que, tendo autorização dos herdeiros, seria possível essa recriação da imagem da pessoa, claro que obedecidos alguns requisitos especificados", explicou.

Ainda segundo o jurista, não há uma regra específica sobre ser deixado em um testamento se quer proibir ou não o uso de imagem e voz após a morte. "Com a ausência dessa regra específica, acaba-se privilegiando a vontade dos herdeiros", explicou, "então se os herdeiros entendem que é possível refazer aquela imagem, eles dão a autorização para fazer essa reconstrução."

"O que hoje já está se discutindo bastante, até na experiência internacional, é que as pessoas passem a prever em seus testamentos uma cláusula em que elas desautorizam ou limitam essa possibilidade de reconstrução digital de imagem", seguiu Medon. Um exemplo é o da atriz Whoopi Goldberg, que proibiu a criação de holograma com sua imagem após a morte.

"Eu defendo que essa reconstrução digital da imagem deve sempre respeitar aquilo que nós chamamos de 'imagem atributo' da pessoa falecida", explicou Medon. "Diz respeito aos atributos que dizem respeito de uma pessoa na sociedade, sobre como ela é conhecida. Se a pessoa tem uma reputação de ser alguém pacifista como Gandhi, eu defendo que não seja possível que os herdeiros de Gandhi fizessem uma campanha usando a imagem dele defendendo uso de armas. O grande problema, no entanto, é que não existe alguém legitimado para essa defesa sem ser os herdeiros. Então, se os herdeiros estiverem de acordo, é muito difícil ter uma defesa desse direito."

Como "reviver pessoas com IA" afeta a memória?

"De algum modo, o desejo humano pela virtualização e a eternização daquilo que envolve a noção de alma, os corpos e a verve de vida, incluindo nossos movimentos, gestos, vozes etc., como uma forma de lidar ou driblar a certeza da finitude", explicou a professora Talitha Ferraz, mestre em Comunicação e Cultura e professora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM.

"Na modernidade, atingimos um refinamento tecnológico capaz de capturar e projetar mecanicamente a imagem em movimento, inaugurando, assim, um outro tipo de real: o real cinematográfico e sua impressão de realidade, que ao longo do tempo passou naturalmente a habitar os nossos cotidianos, espaços de convivência e imaginários", continuou. "Em uma etapa tão acelerada de transformações tecnológicas como hoje, que esses domínios também não se vinculassem aos nossos contextos póstumos, às possibilidades de 'sermos revividos' pós-humanamente a ponto de reexistirmos ativamente para tecer novas experiências com o mundo que ficou sem nós... e tudo isso para além do legado das imagens de arquivo que durante nossa vida biológica eventualmente gravamos., segundo ela, essa tendência é um caminho "que não é de todo inesperado, mas nem por isso deixa de levantar preocupações de ordem ética e moral em relação aos usos da memória, ao modo como o luto é atualmente manejado e aos direitos ao esquecimento."

"Uma sociedade apegada a um sentido de memória como saturação deliberada, com odes a um passado que é retomado e recriado no presente como puro simulacro e de modo homogêneo, sem críticas, revisões ou filtragens, corre o sério risco de cair em quadros reacionários com tendência restaurativa de um suposto passado de glória ou perfeição", resumiu.

Segundo a especialista, poder recriar pessoas com inteligência artificial não altera apenas nossa relação com o luto, mas também com "as dimensões éticas e políticas de memória". "Se rapidamente colocamos no lugar da pessoa perdida a sua recriação por IA, uma presença imagética que continuará interagindo conosco efetivamente, reagindo às circunstâncias do presente, será que ainda teremos tempo, espaço e produção simbólica suficientes para elaborar o luto?", questiona.

"Recriar" pessoas mortas com IA será mais comum?

Rafael Gimenes das Neves sinaliza que isso já é uma tendência e deve continuar assim, mas não por causa dos avanços tecnológicos: "É muito pela questão do humano e a nossa resistência em compreender e aceitar a finitude. 'Eu não quero que acabe, então não vai acabar'."

"A tendência nos próximos anos é que isso acabe necessitando de menos e menos dados ou então aumente o realismo com a mesma quantidade de dados que hoje é necessária", continuou. "É uma coisa do âmago da alma humana que é o 'não quero perder', 'não quero que acabe', mas vai acabar. [A diferença] é que agora a gente consegue disfarçar. Então eu não preciso ter a pessoa em carne e osso, mas tenho ela em uma telinha. O que é real e o que não é real está numa linha muito nebulosa hoje"

"Quanto mais a gente for ficando imerso nesse tipo de tecnologia, mais nebulosa vai ficar essa linha, o que permite que esse caminho de 'ressucitar os mortos' por imagem, vídeo ou texto acabe se tornando uma coisa mais e mais corriqueira - então é uma tendência, sim."

"Isso abre uma série de questionamentos morais e éticos sobre até que ponto podemos utilizar essa tecnologia", reforçou o professor.

 

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