Humberto Campana: "Não sei escrever história. Conto histórias fazendo móveis"

O designer fala sobre o período de pandemia, quando ficou com o ateliê fechado, e do projeto atual: uma fundação no interior de São Paulo que reunirá museu e ateliês de arte e natureza

Juliana Martins Lopes, colaboração para a CNN Brasil
Cadeira Santo Amaro  • Divulgação
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Sempre nos preocupamos em fazer trabalhos que não agredissem, que estivessem em sintonia com o planeta, seja dando a segunda pele a materiais, seja recuperando tradições em desaparecimento. A tradição manual é o DNA dos Campana.
Humberto Campana

Depois desse longo tempo de reclusão, como você olha hoje para as suas criações? E também para sua existência na cidade e o espaço em torno.

Humberto Campana: Antes da pandemia eu era nômade. Vivia em hotéis, em aviões. E não tinha tempo de reflexão. Não dava tempo para fazer uma viagem dentro de mim. Era tudo trabalho. Aí veio a pandemia e eu entrei em pânico, realmente, porque sou um cara muito ativo. Quase enlouqueci no início. De repente tudo o que estava construído dentro de mim desmoronou. Meu estúdio fechado, aquela incerteza.

O interessante é que eu comecei a recortar, peguei uma tesoura e comecei a recortar figuras e fazer colagens. Queria exprimir não uma coisa estética, mas uma catarse. O pesadelo, o medo, as incertezas. Eu fiz umas 60 colagens e no final eu estava dominando tão bem, cortava uma unha de pessoa, o cabelo de alguém. Eu já estava craque (risos) em recortar revistas e montar.

E foi ótimo.

Sim. E depois, engraçado... Venho do interior, de Brotas, e a gente herdou do meu pai um sítio, um sítio pequeno. Ir para lá e revisitar era como reviver o passado e eu não queria isso. Com a pandemia fui para o sítio e pensei, "puxa, quero fazer aqui uma fundação". E comecei a desenhar os pavilhões. Pavilhões com plantas, cactos. Com bambu, palha, tijolo. E plantar árvores.

Pensei que a forma de resistir a essa pandemia era criar um santuário de plantas e de educação ambiental. As pessoas no interior não têm tanto acesso à arte.  Vão começar a entender, sem conflito. Estou nesse projeto com o Fernando há 1 ano e meio. Estamos trabalhando com biólogos da USP porque serão são 12 pavilhões e, segundo os biólogos, eles vão aplicar isso a várias partes do país. É uma coisa única de unir natureza e arte.

Como vai funcionar essa fundação?

Terá um museu ou uma escola de tradições manuais, que estão desaparecendo. O interior tinha muito daquela coisa de trama do bambu, de fazer balaio, de bordado, e fazer selaria. Queremos fazer workshops lá, um lugar do futuro que possa preservar toda essa tradição, preservar a natureza e os animais. A intenção é essa. Isso me ajuda a resistir a tudo isso que está acontecendo. Pandemia, situação política, a invasão da Ucrânia. Acho que a arte cura. Criar, ou mesmo trabalhar no que você gosta, ajuda você a não cair.

Vocês sempre tiveram esse pensamento de preservar o meio...

Sim, eu e Fernando sempre nos preocupamos em fazer trabalhos que não agredissem, que estivessem em sintonia com o planeta, seja dando a segunda pele a materiais, seja recuperando tradições em desaparecimento. A tradição manual é o DNA dos Campana. É o feito à mão. No nosso trabalho, tudo acontece através dos materiais. A primeira exposição foi o ferro, depois foi com as cadeiras de corda. Depois foram com os bancos de papelão. Depois o vime tramado com plástico. Depois o bronze. A cada 7, 10 anos, a gente escolhe um material para criar uma nova coleção.

Vermelha Chair / Krause & Johansen/Divulgação
Vermelha Chair / Krause & Johansen/Divulgação

E o material do momento qual é?

Então... Eu não quero falar porque tenho medo das pessoas copiarem (risos). Estou muito animado porque é um material muito simples, muito humilde. Estou muito feliz, tomara que dê certo porque ainda não fiz nada. Está tudo no rendering. E na cabeça, né? Na imaginação. Mas eu acho que vai dar certo porque eu tenho 35 anos, mais até, de estrada. Eu conheço os materiais, eu sei como vão se comportar.

Estamos em março de 2022. Como vocês conseguiram trocar a chave da pandemia, dar essa volta por cima?

Sou muito rápido. Eu sou Peixes com Peixes. Não sou razão, vem tudo pelo estômago, sonhos. Tenho esse contato com a espiritualidade e me adapto. Olha, eu nasci no interior, numa família burguesa, careta, cristã, muito militar na família. Imagina você ser um artista com sensibilidade nos anos 1950, você deve imaginar o que passei. Tive de fazer a faculdade na Ditadura Militar, ser artista era um problema e aí minha família me encaminhou e fiz direito na USP. Odiei. Porque não tinha nada a ver comigo. Aí eu dei o diploma pra minha família e falei “agora vou cuidar da minha vida”.

E o que você fez a partir daquele momento?

Pensei: vou começar a minha vida com as minhas mãos. Me mudei pra Bahia, para Itabuna, olha que bizarro, era o fim do mundo. O amigo que me acolheu era arquiteto e me falou para fazer uns espelhos de banheiro com moldura de conchas. Pegava um ônibus e ia pra Ilhéus, Olivença. Naquela época era lindo porque não tinha casa, eram cajuzeiros na beira do mar, macacos, micos dourados, era tão bonito. Eu conheci a Bahia nessa época. Foi muito legal porque eu comecei a fazer espelhos com conchas para viver.

Sofá Anhanguera / Divulgação
Sofá Anhanguera / Divulgação

Quando vocês abriram o ateliê em São Paulo?

Depois de um ano lá, voltei para São Paulo e montei o ateliê. Fazia artesanato, continuei com os espelhos e comecei a ampliar. Comprava balaios de bambu em Brotas, tingia e vendia em lojas do Mappin e outras lojas de presente. Eu queria ser artista, queria ser escultor. Fazia cursos de escultura, de joalheria. Aí, tudo foi acontecendo, lentamente.

Quem te inspirava nessa época?

Lina Bardi me inspirou muito. Visitava as exposições que ela montava no Masp, que eram lindas, sobre cultura popular brasileira. Ela mostrava para a gente: “Olha as riquezas que vocês têm, não copiem a Europa”. Burle Marx me inspirou também. Então tentei me inspirar pela Lina, pelo Niemeyer. E quando nasci, Brasília estava sendo projetada. Teve inauguração de palácios no meio de deserto, no meio do Cerrado. Aquilo era fascinante, era um Brasil que ia dar certo. Era a época do aterro do Flamengo, Lina Bardi, Flávio de Carvalho, o Tropicalismo, Oiticica, Ligia Clark. Era o Brasil que estava se abrindo para o mundo. E aquilo tudo, eu peguei aquele vento. Minha geração. Sou consequência daquele momento.

Fernando e Humberto Campana (de óculos) em visita a Brasília / Divulgação
Fernando e Humberto Campana (de óculos) em visita a Brasília / Divulgação

Vocês são uma marca de duas pessoas. Como vocês organizam essas duas autorias numa única identidade?

É engraçado. Eu gosto muito do Fernando. É difícil ter irmão sócio mas existe um amor um pelo outro, um desejo que o outro cresça, que vá também junto. Existe muito conflito. O Fernando é irmão é mais novo, então ele tem essa visão de irmão mais novo, sabe, meio birrento. Não é por nada, mas eu como irmão mais velho, 8 anos de diferença, enxergo um pouco de outra forma. Quero o bem dele, que ele cresça junto comigo. Mas é difícil ter relação com irmão.

Como é uma rotina sua típica atualmente? Imagino que você ainda tenha alguns picos de criação e vontade de isolamento.

Sou uma pessoa muito solitária, uma boa companhia para mim. Tenho muitos amigos, mas não falo com eles. Fico uns três meses sem falar. Porque se fico muito com uma pessoa, minha energia começa a ir embora e tento preservar isso. E a minha rotina é acordar cedo, correr e ir para o estúdio. E é fundamental pra mim ir para o estúdio porque aí começo a ordenar meus pensamentos. À noite, vejo televisão e não consigo mais ler, tão difícil, fico chateado porque eu lia muito. Acho que depois que comecei a ser artista toda minha energia foi direcionada para eu ficar imaginando peças no ar. Eu sonho às vezes, eu sonho uma cadeira e eu faço. Fica um desenho na minha cabeça o tempo inteiro.

Esse processo criativo então acontece a todo momento.

Sim, até quando estou fazendo análise, fico falando dos meus problemas existenciais e aí vêm as ideias, sabe. Tenho um outro plano. 80% do tempo eu vivo numa outra sintonia... Acho que foi uma forma que escolhi pra me proteger. Não sei se é boa, se é ruim. Mas, eu gosto da solidão, do silêncio, adoro música, fazer playlist. Jazz, música clástica, Bach, Céu, Vanessa da Mata. Tanta gente boa aí.

Castiçal Lacrime di Coccodrillo / Simona Caleo/Divulgação
Castiçal Lacrime di Coccodrillo / Simona Caleo/Divulgação

Como fica esse novo jeito de morar, essa relação com o território?

Hoje a casa faz muito sentido. Com a pandemia, as pessoas ficaram mais em casa. A minha cozinha virou minha oficina, virou lugar de trabalho. Minha casa é muito pequena. E eu comecei a curtir a casa. Eu antes saía todo fim de semana pra ir ao cinema. E hoje eu adoro ficar em casa aos sábados. Não ter aquela multidão de restaurante, de gente falando. Nossa, como eu mudei.

Das obras criadas até agora, o que você sente que já deixa como legado?

Pode parecer pretensão, mas são várias. A cadeira Favela representa uma nova forma de projetar um móvel. Ela é um esqueleto de madeira que você vai preenchendo, mudou todo o conceito de uma geração. A cadeira Vermelha, feita de cordas, trouxe material novo e tirou a caretice do modernismo padrão Bauhaus, escandinavo.

Eu e o Fernando buscamos fazer tudo ao contrário dos modernistas. Tenho o maior respeito por esses mestres, mas quis seguir outro caminho, o caminho do Brasil. O Brasil do caos, o Brasil imperfeito, o Brasil da mistura de raças, aquela coisa híbrida, um país solar, barulhento.

Eu não fui para o minimalismo, para o alemão. Segui o caminho da confusão, do barulho, de contar histórias. Nós somos contadores de histórias. De lugares que a gente visita, de experiências que transformamos em catarse. Eu não sei escrever história, mas eu conto histórias fazendo móveis.
Humberto Campana