A Lava Jato cotidiana

Há poucos dias, participei de um evento sobre os 10 anos da Operação Lava Jato. Advogados, juízes e professores debateram os exageros de um grupo de juízes e procuradores que, com apoio dos Tribunais, mídia e sociedade civil, passaram por cima de regras legais com o escopo de combater a corrupção e ocupar espaços de poder.
Foram elencados e repetidos os desacertos da operação, dentre os quais: prisões preventivas sem fundamento, uso de conduções coercitivas, vazamento ilegal de dados e informações para a imprensa, execução da pena sem condenações definitivas, dentre outras ilegalidades ocultas, à época, pelo véu de um bom mocismo que prometia “acabar com tudo isso que está aí” e reformular a política nacional.
Ao final do seminário, todos concluíram que aquele tempo passou, que reformas legais e institucionais dificultaram as estratégias de abuso de poder, e que os Tribunais finalmente reconheceram as ilegalidades, colocando uma pá de cal nos abusos. A todos pareceu que os desmandos fazem parte de um passado, talvez ainda ameaçador, mas que não impacta os sonos com o temor de sirenes e pancadas à porta a cada manhã.
Todas essas reflexões em torno da Lava Jato são corretas, menos a conclusão. É possível que seus alvos e advogados respirem aliviados, mas para aqueles que lidam com acusados ou suspeitos dos setores mais pobres da população, as ilegalidades não são parte do passado, mas persistem em um presente aflitivo.
Buscas e apreensões domiciliares sem mandato, prisões sem fundamento, revistas vexatórias, condenações com base apenas na palavra de policiais e execuções provisórias de pena, fazem parte da rotina daqueles que não integram o seleto rol dos afetados pela Lava Jato. Não se observa nesse segmento, o alivio com
a moderação dos Tribunais e a limitação ao abuso das autoridades, mas apenas a cotidiana preocupação com balas perdidas e violência desmedida.
Há quem diga que o arbítrio nesse contexto é justificado, dada a gravidade dos crimes praticados, em regra relacionados ao crime organizado, e que o comedimento exigido para delitos sem violência, como corrupção ou carteis, não se aplica ao tráfico de drogas e roubos que afligem a população.
Ocorre que, gostemos ou não, há algo chamado legalidade. É um princípio que submete o Estado e seus agentes ao império da lei, às regras criadas e estabelecidas por um processo democrático. Vale para todos, independente da classe social e do crime cometido. Se a norma exige ordem judicial para entrar em domicílios, vale para ricos e pobres, acusados de roubo ou de crimes de licitação. Se a Constituição estabelece a presunção de inocência, inadmissível a pena sem condenação definitiva, independente da classe social ou da repercussão midiática do delito.
O grau de civilidade de um povo está atrelado ao respeito à lei. Enquanto repudiarmos ilegalidades contra os altos escalões e fecharmos os olhos para o arbítrio cotidiano sobre as camadas mais pobres da população, seguiremos cumplices de um Estado de exceção, que voltará a tomar gosto pelo arbítrio e aguardará na esquina aqueles que aplaudem, ostensiva ou timidamente, seus abusos.
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