Entenda o poder da coleção de arte do falecido bilionário dono da Samsung
Mais de 200 obras da vasta coleção da família Lee são expostas no Smithsonian, em Washington, como parte da estratégia cultural da Coreia do Sul
Por mais de sete décadas, a família por trás do gigante eletrônico Samsung acumulou uma das maiores coleções privadas de arte da Ásia. Agora, com milhares de suas obras inestimáveis em mãos públicas após a morte do presidente do conglomerado, a coleção está sendo destinada a um novo propósito — como parte da estratégia de "soft power" da cultura coreana, conhecida como "K-culture".
Mais de 200 dos 23.000 objetos doados ao país em 2021 pelo espólio do falecido Lee Kun-hee — supostamente como parte de um acordo para quitar uma dívida de impostos sobre herança de mais de 12 trilhões de wons (cerca de R$ 43 bilhões) — estão sendo expostos no Museu Nacional de Arte Asiática do Smithsonian, em Washington, DC, este mês.
Abrangendo 1.500 anos, os itens selecionados pelos curadores do Smithsonian para a exposição "Tesouros Coreanos: Colecionados, Estimados, Compartilhados" oferecem aos visitantes um vislumbre das raízes e da evolução da identidade moderna da Coreia, bem como das motivações da notoriamente reservada família Lee.
Os objetos variam de raras esculturas budistas e textos sagrados a móveis antigos e pinturas do século 20 de artistas pioneiros como Lee Ungno e Kim Whanki, que, segundo os curadores, redefiniram a pintura coreana em um mundo em modernização.
A coleção Lee Kun-hee, iniciada pelo pai de seu homônimo, o fundador da Samsung Lee Byung-chul, é sem precedentes em seu escopo e escala. Quase todos os 23.000 itens doados foram para o Museu Nacional da Coreia e o Museu Nacional de Arte Moderna e Contemporânea, cujos curadores colaboraram com o Smithsonian para esta exposição. Após o anúncio da doação, o governo sul-coreano revelou planos para um novo museu em Seul dedicado à coleção, que espera "fortalecer a identidade da marca da Coreia como potência cultural".
A exposição em Washington, DC inclui várias seções dedicadas ao último reino real da Coreia, a dinastia Joseon, que durou de 1392 a 1910. Os curadores apresentam os gostos e valores morais da elite acadêmica através da arte da corte e objetos cerimoniais, oferecendo um olhar sobre os ideais, a estética e os sistemas de mecenato que moldaram a cultura coreana.
A exposição também aborda o budismo e seu legado na península coreana, bem como as tentativas de artistas modernos de lidar com a Guerra da Coreia e as mudanças monumentais que ocorrem no país e globalmente.
Uma identidade formada
Alguns itens da exposição em Washington, DC, também serão exibidos em Chicago e Londres no próximo ano, em meio ao crescente fascínio global por tudo que é coreano, do K-beauty ao K-pop.
"É fantástico que a Coreia esteja fazendo essa contribuição global para a cultura popular da maneira que está, mas, sabe, a cultura coreana não começou há 10 ou 15 anos, certo?", disse Chase F. Robinson, diretor do Museu Nacional de Arte Asiática do Smithsonian, durante uma videochamada. "Existem reservatórios profundos ou veias, especialmente da cultura visual coreana. Esta é uma oportunidade de ver isso em ação."
A exposição, acrescentou Robinson, irá "desempenhar um papel importante no preenchimento dessa compreensão e na visualização de algumas dessas tradições pré-modernas que alimentam esses milênios de dinâmica criativa."
O tema é particularmente relevante dado o crescimento, a influência e o poder cultural das comunidades asiático-americanas nos Estados Unidos, disse.
A maioria dos objetos está sendo exibida fora da Coreia pela primeira vez, segundo os organizadores.
"O fato de existir essa herança tão multidimensional e tão rica — reunir tudo isso e mostrar seu significado — é o que considero notável e extraordinário", disse Carol Huh, curadora associada de arte asiática contemporânea do museu, durante uma videochamada.
O interesse e especialidade de Huh está no trabalho de artistas dos séculos 20 e 21 que abordaram a modernização e um cenário político em rápida transformação. É um período em que a Coreia, tendo tido muito pouco contato com o mundo exterior por séculos, de repente se viu sendo influenciada por forças e tendências muito além de seus vizinhos imediatos.
Em 100 anos, o país passou de dinastia imperial para colônia japonesa, até se tornar dois estados independentes após a península ser dividida em norte controlado pelos russos e sul administrado pelos EUA após a Segunda Guerra Mundial. A Coreia do Sul é hoje uma democracia liberal, enquanto o Norte é um estado totalitário governado por Kim Jong Un.
"Eles estavam no centro dessa história complexa de tentar entender o que significa ser um artista na Coreia", afirmou ela.
Huh explicou que o legado dos Lee preenche uma lacuna na história da arte contemporânea coreana, com obras de quase 300 artistas do século 20. Foi, segundo ela, um período de identificação e afirmação de formas culturais distintamente coreanas.
Entre a seleção do Smithsonian estão obras de artistas como Kim Whanki, figura proeminente do movimento monocromático Dansaekhwa, cujos membros — tendo vivido a libertação da Coreia do domínio japonês, uma guerra civil e a ditadura militar — usavam a abstração para evitar significados explícitos em suas imagens, em parte por medo da rígida censura governamental. Também são destaque Lee Ungno e Park Saengkwang, parte do movimento artístico antitético Minjung (ou arte "do povo"), que buscava promover a democracia e a justiça social nas décadas de 1970 e 1980.
A família Lee "buscou perspicazmente pinturas modernas em uma época em que poucos lhes davam atenção", destaca o catálogo da exposição.
Um legado colecionado
O fundador da Samsung, Lee Byung-chul, foi parcialmente motivado pelo desejo de repatriar arte da história coreana. Muitos dos artefatos que ele adquiriu haviam, ao longo dos séculos, sido enviados ao exterior, perdidos ou ativamente apagados pelo governo colonial japonês, que chegou a tentar proibir a língua coreana.
"O patrimônio cultural de nossa nação não deve mais ser dispersado ou perdido no exterior", escreveu ele em sua autobiografia.
Os Lee fizeram várias doações a museus em toda a Coreia do Sul nas últimas décadas. E mesmo após sua vasta doação em 2021, a família mantém uma considerável coleção privada, parte da qual está em exibição no Museu de Arte Leeum, administrado pela Samsung em Seul, onde a família continua seu legado colecionador.
As aquisições de arte de Lee Kun-hee não foram isentas de controvérsia: em 2007, ele foi acusado por Kim Yong-chul, um ex-advogado da Samsung, de comprar obras de arte caras usando fundos secretos da empresa. Essa acusação, que Lee negou, desencadeou uma investigação sobre o ex-presidente que resultou em sua condenação por sonegação fiscal em 2008, embora os promotores nunca tenham apresentado acusações de suborno relacionadas aos supostos fundos secretos.
Assim como alguns dos artistas em sua coleção, a família Lee também parecia lidar com o significado de ser coreano em uma era globalizada, e a coleção oferece vislumbres do que os Lee e seus consultores consideravam parte da identidade coreana — e o que eles buscavam projetar para o resto do mundo.
Lee Kun-hee é citado no catálogo da exposição dizendo: "Quando a identidade coreana permear nossa vida cotidiana, alcançaremos competitividade cultural no cenário mundial".
Seu pai, por sua vez, era conhecido por escrever sobre como as obras de arte o empolgavam quando precisava de um estímulo espiritual, ou o acalmavam quando estava agitado ou perturbado, disse J. Keith Wilson, curador de arte chinesa antiga do Smithsonian.
"Claramente, ele tinha uma conexão muito pessoal com a arte coreana do passado e conseguia se comunicar com ela de uma maneira aparentemente espiritual", acrescentou Wilson.


