Exército defende negócio e diz que conseguiu o melhor preço de mercado
O Exército citou, como justificativa para o valor pago, cotação feita por empresa da Índia feita apenas depois de a entidade já ter fechado a compra
O Centro de Comunicação Social do Exército defendeu o negócio fechado com a empresa Sul Minas para a compra de dois lotes de insumos importados para a fabricação de cloroquina, pelos quais pagou 167% a mais do que havia comprado da companhia mineira dois meses antes.
O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército confirmou que não possui informações sobre o preço pago pela Sul Minas ou as datas de importação dos insumos e afirmou que não cabe ao laboratório ter tais informações, mas sim “fazer a contratação e aquisição de materiais com o melhor preço ou técnica baseada em ampla pesquisa de preços no mercado, conforme as diretrizes da Lei nº 8.666/93.”
O Exército citou ainda, como justificativa para o valor pago, uma cotação feita por uma empresa da Índia que foi apresentada apenas depois de a entidade já ter fechado a compra pela Sul Minas.
Essa cotação não foi feita pelo Exército, mas sim extraída de um ofício do Itamaraty de 8 de junho, que contém uma troca de mensagens entre a Divisão de Promoção e Negociação de Temas da Indústria (DPIND), órgão do Itamaraty, e a Assessoria de Assuntos Internacionais de Saúde, do Ministério da Saúde.
No documento, a divisão afirma que a Embaixada brasileira na Índia pediu orçamentos a empresas no país para comprar insumos para fabricação de cloroquina e que uma delas, a Alcon Biosciences Pvt Ltd, ofereceu 3 mil kg do produto a US$ 190 dólares/kg, para retirada no local de fabricação. Ou seja, sem incluir fretes, impostos e outros custos envolvidos para trazer os insumos ao Brasil.
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O Exército disse ainda que o governo da Índia havia estipulado preços para a venda dos insumos no país e limitado as quantidades que poderiam ser adquiridas. A CNN procura o Itamaraty para comentar o ofício e o uso desses dados pelo Exército desde quarta-feira (9), mas a pasta não respondeu a nenhum dos questionamentos.
Outro argumento trazido pelo Exército foi a alta na cotação do dólar, de 51,19% entre a homologação do pregão de 2019 com a Sul Minas (quando foi registrado o preço de R$ 488) e a compra em maio de 2020 (que custou R$ 1.304 por quilo).
A partir dessas comparações, o Exército conclui que o aumento nos custos foi somente de 21,11% (US$ 190 da cotação feita pela embaixada na Índia ante os US$ 230,10 dólares, ou R$ 1.304, nos valores da época, pagos à Sul Minas), “sendo este um impacto mínimo diante da necessidade (Teoria da mais Valia) e da busca mundial pelo medicamento”, segundo o documento da instituição.
Essas informações da instituição foram fornecidas em respostas por meio da Lei de Acesso à Informação. A assessoria de imprensa do Exército não respondeu aos questionamentos até o fechamento da reportagem.
Novas compras
Sem comprovação de sua eficácia no combate à Covid-19 nem mesmo nas evidências científicas publicadas periodicamente pelo Ministério da Saúde, o Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército já gastou R$ 1,1 milhão na fabricação de cloroquina, entre insumos e embalagens, sob a justificativa da demanda gerada pela pandemia. O produto já era fabricado antes, em menor quantidade, para combate à malária.
Na mesma época dessas compras de insumos com a Sul Minas, o posicionamento do próprio Ministério da Saúde era divergente para o uso do remédio em pacientes da Covid-19.
No dia 27 de março, a pasta publicou uma nota informativa regulando o uso do medicamento como terapia adjuvante (ou seja, em apoio à terapia primária) somente nos casos graves.
No dia 4 de maio, dois dias antes da primeira aquisição do Exército junto à Sul Minas, o ministério afirmou em resposta a pedido feito por meio da Lei de Acesso à Informação que “não é possível garantir a eficácia e segurança do uso da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes infectados por SARS-CoV-2, devido à indisponibilidade de maiores informações sobre as circunstâncias da sua utilização e a necessidade de investigações mais robustas.”
Esse posicionamento institucional mudou depois da saída do ministro Nelson Teich, contrário à indicação do remédio à época, em 15 de maio. Cinco dias depois, já sob o comando do ministro interino Eduardo Pazuello, o governo divulgaria as novas diretrizes para uso do medicamento, incluindo o uso para casos leves da doença.
Em abril, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendou que a cloroquina fosse usada exclusivamente para as indicações terapêuticas já aprovadas e que constam na bula do medicamento – ou seja, para a malária e não para a Covid-19.
A CNN questionou se esse posicionamento da agência mudou desde então e o órgão esclareceu no dia 14 de setembro que a recomendação segue a mesma. “Cabe ressaltar que o uso do medicamento para indicações não previstas na bula é de escolha e responsabilidade do médico prescritor”, disse o órgão, em uma resposta enviada por meio da Lei de Acesso à Informação.
A CNN questionou ainda se a Anvisa recomenda a fabricação de cloroquina para tratamento da Covid-19. “O uso do medicamento é aquele previsto para as indicações aprovadas no registro por esta Anvisa”, reforçou o órgão.
O Ministério da Saúde informou que está em andamento um processo de aquisição de mais comprimidos de cloroquina com a Fiocruz, pois a pasta só tem estoque para o programa de controle da malária.
Estoque
O Ministério da Saúde já distribuiu mais de 5 milhões de comprimidos de cloroquina até o momento para tratamento da Covid-19. Mas nem todo mundo tem usado todo o remédio recebido. Um levantamento feito pela CNN em todos os estados revelou que ao menos um quarto do material distribuído estava em estoque no mês de agosto.
O próprio Exército ainda mantinha um estoque de mais de 400 mil comprimidos até o dia 7 de setembro. O risco de ficar com “sobra” tinha sido alertado em maio por técnicos do governo, quando o Centro de Operações de Emergência (COE) informou, em ata, que “alguns estados não quiseram receber a cloroquina e, com isso, ficou em estoque para devolução 1.456.616 comprimidos.”
A ata do COE informou ainda, sobre a cloroquina, que “devido à situação atual não é aconselhável trazer uma quantidade muito grande, pois caso o protocolo venha a mudar, podemos ficar com um número em estoque parado para prestar contas.”