“Maníaco da Mooca” pode ter sido morto por tribunal do crime; entenda o que é
Caso do “Maníaco da Mooca” chamou atenção para possível atuação de “código de ética” do crime
O desaparecimento de Solirano de Araujo Sousa, 48, conhecido como “Maníaco da Mooca”, e a declaração do delegado do caso, Ricardo Salvatori, que disse não descartar execução pelo tribunal do crime, revisitou essa vertente do crime organizado no Brasil.
Atuando para “zelar” o “código de ética do crime”, o Tribunal do Crime é visto como um instrumento utilizado por grandes facções para punir membros e pessoas que cometam crimes fora das “regras” da violência urbana.
A CNN conversou com especialistas em segurança pública, que atuam contra o crime organizado. Eles explicam como funciona os aspectos dessa ala do crime organizado, responsável por uma justiça paralela.
Estrutura do tribunal
O delegado e presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP), André Santos Pereira, contou para CNN que a estrutura do Tribunal do Crime, na prática, funciona como um poder paralelo. As facções denominam esse tribunal como “Disciplina”, segundo o promotor de Justiça, Juliano Atoji, que explica que o tribunal atua como uma “corregedoria” dos membros das facções.
A estrutura é constituída por lideranças respeitadas entre os criminosos, dentro das maiores facções do país. Para o delegado, que atua no combate de uma das maiores facções do país, o tribunal tem papel central dentro das organizações criminais. Segundo o especialista, eles são geralmente escolhidos por sua experiência e posição dentro da facção.
Aplicação pode envolver represálias severas, incluindo mortes e outros tipos de violência física
André Santos Pereira, presidente da ADPESP
O tribunal pode ser encarregado de decidir sobre a punição de infrações cometidas por membros da facção. De acordo com Atoji, as punições se dão em eventuais transgressões ao estatuto da facção, traições e até mesmo excesso nas punições praticado por membros.
Toda sintonia local (divisão das facções) possui a figura do “disciplina” para resolução de conflitos na comunidade, sobretudo nos locais em que os serviços do Estado não chegam, evitando, assim, que a polícia compareça ao local e iniba o fluxo da traficância
Juliano Atoji, promotor de Justiça
O promotor explica que as maiores facções atuam com divisões (denominadas como “sintonias”), conforme as atividades exercidas pelas facções. Para cada uma dessas divisões existe a figura do “Disciplina” (corregedor do crime) para aquela divisão. Dentro dessas divisões, existe ainda subdivisões, como por exempli, na sintonia do tráfico de droga. Isso porque cada região do tráfico é representada por um “disciplina” diferente.
Existe também um disciplina geral, que garante a “aplicação normativa” e ordens da cúpula da facção. Ele só fica abaixo da “sintonia dos 14”, ou seja, grupo que lidera a organização criminosa
Juliano Atoji, promotor de Justiça
“Código de ética do crime”
Segundo o presidente da ADPESP, o “código de ética” é um conjunto de regras não escritas que regula o comportamento dos membros da facção. As decisões são tomadas com base em reuniões informais ou conselhos entre os membros mais respeitados.
As infrações podem incluir traição (delatar membros), roubo, desrespeito a ordens da liderança, e, em algumas facções, a venda de drogas adulteradas. O delegado pondera que a tomada de decisões e as “penas” aplicadas pelo tribunal, dependem de vários fatores.
Cada facção pode ter suas próprias categorizações de infrações
André Santos Pereira, presidente da ADPESP
As punições são levadas a julgamento (sumariadas) por intermédio dos Tribunais do Crime, também conhecido como “tabuleiro”.
No local, os transgressores, faccionados ou não, ficam por horas e até dias sendo violentados, torturados. A punição mais comum é a mutilação
Juliano Atoji, promotor de Justiça
Aqueles que praticam graves traições e crimes não tolerados pela facção, a exemplo dos sexuais, bem como os “reincidentes”, podem ser punidos com morte.
Um consenso entre os especialistas é a inflexibilidade do crime organizado diante de delitos com cunho sexual. Os crimes sexuais sofrem forte repugnância por parte dos criminosos, considerado ato de covardia e não tolerável. O tribunal atua de forma diferente com envolvidos nesses crimes, pois as facções consideram a necessidade de manter uma imagem de “honra”.
Alguns grupos acreditam que tais crimes desonram a facção e suas tradições, levando a punições severas por parte do Tribunal do Crime.
André Santos Pereira, presidente da ADPESP
Impacto social
A existência de Tribunais do Crime gera um clima de medo e controle na comunidade, onde as facções impõem regras e punições de forma autônoma, criando um ambiente onde a população pode se sentir insegura e sem proteção.
O medo, a intimidação e a certeza da punição com violência são marcas registradas de todas organizações criminosas, como forma de garantir o bom funcionamento
Juliano Atoji, promotor de Justiça
Para o promotor, o impacto social é a total falência do Estado de se colocar nesses locais, deixando a encargo de organizações criminosas. Há tempos o Estado perdeu seu poder de coerção dos indivíduos para que as normas sejam respeitas. As facções criminosas, com uso da violência, conseguem “fazer valer” as normas.
Na visão do delegado, as facções instrumentalizam o respeito as regras em comunidades, em um ciclo de medo contínuo, que alimenta a violência urbana.
A violência e intimidação são frequentemente usadas para garantir a obediência tanto dos membros quanto da comunidade, levando a um ciclo contínuo de medo e repressão, submetendo pessoas a um verdadeiro Estado paralelo
André Santos Pereira, presidente da ADPESP