Maurício Pestana: o racismo e o consumo
Chagas que estruturam o racismo brasileiro nos acompanham desde os tempos do final da escravização até os dias de hoje
Em meu livro mais recente, “A empresa antirracista”, cito que os maiores problemas enfrentados por pessoas negras em nosso país, desde sempre são três:
1) A discriminação Racial no Mercado de Trabalho, dada a forma desastrosa e excludente como foi realizada a “abolição” da escravatura aqui.
2) Nosso segundo maior problema é a segurança pública, que também advém do período do final da escravização, onde passamos a ser vistos como os “desocupados”, uma ameaça do novo sistema que se organizava.
3) E o terceiro problema dos que mais nos afeta foi com os meios de comunicação, que associou e reforçou, ao longo de todo o século 20, nossa imagem como, desocupados, escravizados ou malandros. Não por acaso o primeiro samba gravado no Brasil “Pelo telefone” inicia a letra com a frase: “Chama o chefe da polícia pelo telefone manda me avisar”.
Essas verdadeiras chagas que estruturam o racismo brasileiro nos acompanham desde os tempos do final da escravização até os dias de hoje, sempre com os mesmos requintes de crueldade, como os fatos ocorridos em duas lojas do grupo Carrefour no final da semana passada.
São problemas estruturais de uma parcela da nossas elites doentes, racistas que, durante quase quatro séculos, só nos enxergava como mercadoria e, após a escravidão, só consegue nos ver como vadios, desempregados e uma ameaça para a ordem pública.
O racismo ocorrido nas unidades do maior empregador do Brasil, cuja principal atividade é o varejo, tem um agravante, pois dos mais de 160 mil funcionários quase 100 mil se autodeclaram negros e se encontram em sua maioria atuando exatamente nas áreas de maiores contatos públicos, ou seja, nos caixas e na segurança local onde ocorreram os atritos.
O episódio envolvendo a professora curitibana e aqui em São Paulo, em com uma caixa na loja em Alphaville, não são casos isolados e muito menos restritos às lojas do grupo Carrefour.
Qualquer pessoa negra que adentra uma loja de grife, um shopping ou a portaria de uma grande empresa, até mesmo de um condomínio, sabe exatamente como os serviços de segurança nos olham, perseguem, discriminam e, se portarem uma arma, quanto pode ser perigoso para pessoas negras.
O grave no caso Carrefour é a reincidência! Obviamente não esperaríamos que uma rede com mais de 160 mil funcionários, com seus mais de um milhão de clientes por mês em suas lojas, resolveria os problemas seculares da sociedade brasileira, mas esperávamos que, depois da morte de João Alberto, quaisquer atos relacionados a perseguições de negros em lojas por seguranças jamais ocorreriam.
Fiz parte do grupo que criou diretrizes para que isso não voltasse a nunca mais ocorrer. A pergunta que se faz é: o que deu errado?
Arrisco dizer que a luta contra o racismo não pode ter trégua, as políticas antirracistas, como letramento racial, a certeza da punição a qualquer ato de racismo, o treinamento contínuo dos agentes de segurança e de pessoas que atuam com o público, somado a uma aliança com organizações ativistas contra o racismo, incluindo setor público, ministério público, governos e a revisão constante das políticas antirracistas e a firmeza de não cessar essa luta um só segundo, é o único caminho para extirpar o racismo que é um das maiores chagas da sociedade brasileira.
Encerro lembrando uma frase que ouvi do ex-CEO da rede Noel Prix que, em entrevista exclusiva no ano auge da crise da morte de João Alberto, disse: “Somos uma rede que vivemos do consumo dos nossos clientes, seria insano, anticomercial, anticapitalista, anti qualquer coisa, eliminar, excluir, discriminar a razão da nossa existência que são os cliente que entram em nossas lojas”.