Leucovorina: conheça droga promovida por Trump para tratar autismo

Substância usada em quimioterapia, mostra resultados promissores no tratamento de deficiência de folato cerebral, que pode estar relacionada ao autismo

Brenda Goodman, da CNN
Entenda quais as evidências científicas da leucovorina, droga promovida por Trump para tratar autismo  • Governo de São Paulo
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Há seis meses, José Morales-Ortiz, de 4 anos, tinha dificuldade para formar frases com duas palavras por conta do autismo severo. A criança não conseguia manter uma conversa, nem respondia ao seu nome na maioria das vezes — habilidades que crianças de sua idade normalmente já desenvolveram.

No final de junho, porém, ficou claro que algo havia mudado.

Keith Joyce, seu guardião legal, disse que Jose passou a conseguir falar sobre outras crianças da escola e responder a perguntas subsequentes.

"Na primeira vez que percebi que tinha tido uma conversa com ele, eu chorei", disse Joyce, de 60 anos, morador de St. Paul, Minnesota, que tem criado Jose desde bebê e o chama de "meu garoto".

Joyce atribui esses avanços à leucovorina, um medicamento atualmente aprovado pela Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) para aliviar os efeitos colaterais de certos tipos de quimioterapia.

Na segunda-feira, o comissário da FDA, Dr. Marty Makary, anunciou que a agência vai acelerar uma mudança no rótulo do leucovorin para ajudar crianças com deficiência de folato no cérebro — condição que, segundo ele, pode causar atrasos no desenvolvimento e características do autismo, incluindo dificuldades de comunicação, processamento sensorial e comportamentos repetitivos. Com a mudança no rótulo, programas estaduais do Medicaid poderão cobrir o medicamento, e a administração se comprometeu a realizar mais pesquisas sobre seu uso terapêutico.

"Isso traz esperança para muitos pais de crianças autistas de que seja possível melhorar suas vidas", disse o presidente Donald Trump durante a coletiva de imprensa de segunda-feira (22). "Esse é um dos aspectos que me deixa muito, muito feliz".

Na mesma coletiva, Trump também fez alegações sem fundamentação sobre o analgésico Tylenol como causador de autismo e alertou os pais sobre aplicar muitas vacinas em seus filhos. Os comentários de Trump geraram preocupação generalizada e críticas de muitos na comunidade do autismo. Mas também há curiosidade sobre o novo uso para a leucovorina, um medicamento antigo.

"Um padrão muito mais alto de ciência seria necessário para determinar se a leucovorina é um tratamento eficaz e seguro para o autismo", disse a Fundação de Ciência do Autismo sobre o anúncio da FDA. O grupo afirmou que atualmente não recomenda o medicamento como tratamento para o autismo com base nas evidências existentes, mas "recebemos com satisfação investigações adicionais sobre a leucovorina".

Baixos níveis de folato no cérebro

A teoria por trás da leucovorina é que ela trata uma condição chamada deficiência cerebral de folato, ou baixos níveis de folato no cérebro. O folato é uma vitamina B essencial para o desenvolvimento neural.

Gestantes tomam sua forma sintética, o ácido fólico, em vitaminas pré-natais. O ácido fólico também é usado para fortificar produtos de farinha e grãos, ajudando a prevenir defeitos do tubo neural, como espinha bífida, durante a gestação.

Em 2005, um neurologista pediátrico na Alemanha descobriu que algumas crianças com sintomas de autismo apresentavam níveis normais de folato no sangue, mas baixos níveis no cérebro. Essas crianças também produziam anticorpos – proteínas especializadas em forma de Y – que bloqueavam os receptores, ou portais, que transportam o folato para o cérebro.

Em um estudo subsequente, 25 de 28 crianças com deficiência cerebral de folato produziam esses anticorpos, enquanto nenhuma das 28 crianças com desenvolvimento típico os apresentava. O estudo foi publicado no New England Journal of Medicine.

O médico alemão trabalhou com Edward Quadros, um biólogo celular da SUNY-Downstate, que desenvolveu um exame de sangue chamado FRAT (Teste de Autoanticorpos do Receptor de Folato). Esse teste foi posteriormente licenciado para um laboratório privado, e médicos podem solicitá-lo nos EUA por cerca de US$ 300.

Dr. Richard Frye, um neurologista pediátrico com clínica particular em Phoenix, Arizona, ficou intrigado com a pesquisa e começou a testar crianças que passavam por sua clínica.

"Demonstramos que cerca de 75% das crianças com autismo têm esse receptor alfa de folato que bloqueia a capacidade do folato de chegar ao sistema nervoso", disse Frye. "E nós as tratamos com leucovorina e demonstramos que sua linguagem melhorou, sua comunicação verbal melhorou."

Em um ensaio clínico publicado em 2013, Frye descobriu que um terço das crianças tratadas apresentou melhora moderada a significativa em comparação com um grupo controle de crianças que estavam em lista de espera para esta terapia, "principalmente em comunicação, comunicação verbal, fala expressiva, linguagem receptiva e afins", explicou.

Frye conseguiu repetir esses resultados em outro estudo publicado alguns anos depois. Seus resultados foram confirmados em pequenos ensaios clínicos na França, Índia, Singapura, China e Irã.

Frye, no entanto, mantém-se cauteloso. "Não existe uma pílula para o autismo", disse ele. "E não existe uma solução única para todos"

"A única coisa que sabemos sobre o autismo é que é muito complexo, e cada criança precisa ser tratada individualmente", acrescentou.

Joyce, o responsável de Jose, leu pela primeira vez sobre a leucovorina em dezembro, mas havia poucas informações disponíveis — apenas alguns pequenos estudos.

Ele conta que está constantemente em busca de novos avanços científicos ou medicamentos que possam ajudar Jose, que frequenta a escola e terapia especializada por 65 horas semanais, mas estava receoso. Levou três meses até que ele consultasse o médico de Jose sobre o medicamento.

"Eu acredito completamente no método científico", disse Joyce, e simplesmente não havia evidências científicas suficientes para apoiar seu uso em crianças com autismo.

Porém, trata-se de um medicamento muito seguro. É uma forma de vitamina B9 em alta dosagem, então o corpo elimina o que não utiliza.

Joyce acabou considerando que valia a pena tentar, mas não conseguiu uma prescrição off-label para Jose até que um pediatra especializado em desenvolvimento, que acompanha Jose e havia participado recentemente de uma conferência onde o tema foi discutido, concordou que o tratamento era promissor.

Como o medicamento é bastante seguro, eles decidiram não realizar o teste de anticorpos – que não era coberto pelo seguro – e simplesmente experimentar o medicamento.

Jose fez uma avaliação inicial de fala em abril para que pudessem medir se o medicamento estava ajudando. Em poucos meses, no entanto, as mudanças foram tão notáveis que ninguém considerou necessário realizar o teste de acompanhamento.

"Voltamos para uma consulta quatro meses depois, e as mudanças foram dramáticas", disse Joyce. A médica ficou impressionada.

Poucas evidências e alguns riscos

Não houve grandes ensaios clínicos controlados com placebo sobre o uso da leucovorina para autismo, como normalmente é exigido pelo FDA antes de aprovar um medicamento. Em alguns casos, os efeitos – que foram medidos ao longo de algumas semanas ou meses – parecem modestos, disse Dr. David Mandell, diretor do Centro Penn para Saúde Mental da Escola de Medicina Perelman da Universidade da Pensilvânia.

Mandell afirma que o estudo mais rigoroso, realizado na China, "encontrou uma mudança de apenas um ponto, em média, em uma escala de 60 pontos a favor da leucovorina. Então, uma mudança muito pequena, realmente não significativa clinicamente."

Ainda assim, Mandell concorda que o medicamento é bastante seguro

Os efeitos colaterais mais comuns em crianças são problemas estomacais como náusea, vômito, diarreia e perda de apetite. Crianças com autismo podem já ser propensas a esse tipo de problema, então isso precisa ser observado.

De forma mais séria, ele explicou que crianças com autismo que também tomam certos medicamentos para convulsões podem ter um aumento dessas convulsões se tomarem leucovorina. O uso deste medicamento precisa ser monitorado por um médico.

Frye também afirmou que a leucovorina pode intensificar a hiperatividade e questões comportamentais.

Isso aconteceu até certo ponto com José, disse Joyce. "Ele está definitivamente mais agitado e mais ativo do que estava antes, mas está dentro de limites toleráveis."

Por um tempo, isso também tornou a vida diária avassaladora. No treino de futebol, por exemplo, José ia para o campo mas saía cinco minutos depois e não conseguia mais se reengajar.

"Nossa teoria é que o mundo dele cresceu tanto, tão rápido, que ele estava tendo dificuldade para processar isso", disse Joyce, acrescentando que isso não acontece mais com tanta frequência.

Em um comunicado na segunda-feira, o FDA informou que realizou sua própria revisão das evidências científicas sobre a leucovorina e concluiu que eram suficientes para alterar o rótulo do medicamento, indicando que ele poderia ajudar crianças com baixos níveis de folato no cérebro.

"As crianças estão sofrendo e merecem acesso a possíveis tratamentos que demonstraram ser promissores", disse o comunicado. "Estamos usando ciência de alto padrão e bom senso para atender ao povo americano."

No entanto, a agência ainda não disponibilizou sua análise científica ao público.

"A FDA divulgará sua análise dos dados e publicará um manuscrito em breve", afirmou Andrew Nixon, diretor de comunicações do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, em declaração à CNN.

Ele informou que a FDA também pretende emitir informações atualizadas de prescrição do medicamento, que incluirão "as informações científicas essenciais necessárias para o uso seguro e eficaz desses produtos no tratamento da deficiência cerebral de folato em pacientes adultos e pediátricos."

A corrida para encontrar ácido folínico

Com base em sua própria análise, Mandell, da Universidade da Pensilvânia, afirmou que as evidências sobre a leucovorina para autismo não atingem o nível de "ciência de alto padrão" e que a aprovação para autismo é perigosa em dois aspectos: primeiro, porque estabelece um precedente perigoso para aprovações de medicamentos, e segundo, porque pode criar falsas esperanças em famílias desesperadas.

Se a FDA conceder uma nova indicação para a leucovorina, como indicou que pretende fazer, seria a primeira vez que isso aconteceria com um medicamento com tão poucas evidências científicas, disse um ex-funcionário da FDA que pediu para não ser identificado por temer retaliação da administração Trump.

"A hipocrisia do que está acontecendo aqui, de dizer que querem usar ciência de alto padrão e depois usar o padrão mais baixo de ciência duvidosa, quero dizer, este é um padrão realmente baixo para fazer uma mudança tão significativa. As pessoas não podem perder isso de vista", disse o funcionário.

O anúncio da aprovação do medicamento em uma coletiva de imprensa de alto perfil na Casa Branca também pode levar as pessoas a experimentarem por conta própria, sem orientação médica ou da FDA.

Em maio, Joyce criou um grupo no Facebook chamado "Leucovorina para Autismo" para compartilhar suas pesquisas sobre a leucovorina e responder perguntas caso outros pais quisessem que seus filhos experimentassem o medicamento.

Desde o anúncio da Casa Branca, o grupo ganhou mais de 10 mil membros.

Ele observou uma tendência preocupante: pessoas correndo para comprar suplementos de ácido folínico sem receita, que são diferentes da versão prescrita e contêm apenas microgramas do ingrediente ativo.

Nos ensaios clínicos, as crianças receberam doses de leucovorina com base em seu peso, podendo tomar até 50 miligramas por dia.

"Alguns dos suplementos têm apenas 800 microgramas (0,8 miligramas) de ácido folínico, levando à necessidade de tomar muitas unidades para atingir uma dose terapêutica", disse Joyce.

Os suplementos também podem conter aditivos ou ingredientes extras que as crianças acabam recebendo em grandes doses, o que pode causar problemas, acrescentou.

O grupo tem uma regra, disse Joyce: não se fala sobre as causas do autismo. Ele contou que passou parte da terça-feira apagando publicações e comentários maldosos sobre o analgésico Tylenol.

"Estou tentando ignorar a fonte e agradecer pela atenção", disse ele.

Ele também está esperançoso por José, que apresentou melhorias na comunicação e no aprendizado desde que começou a tomar o medicamento.

Antes, quando Joyce levava José a um jogo de futebol do Minnesota Loons, a criança ficava hiperfocada no campo, raramente olhando para a multidão ao seu redor.

Mas neste verão, Jose começou a prestar atenção nos cânticos dos torcedores durante o jogo e observava quando as pessoas acenavam com seus cachecóis.

"Eu simplesmente pensei: 'Uau, ele percebeu que o mundo está aqui'", disse Joyce.

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