Cabelo humano traz novas pistas sobre sistema de escrita do Império Inca

Artefato têxtil, envolvido em um minucioso sistema de cordas, era usado para registrar informações no Império Inca

André Nicolau, colaboração para a CNN Brasil
  • Divulgação/Universidade de St. Andrews
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Maior civilização das Américas pré-colonização, o Império Inca é alvo de um estudo arqueológico que rendeu uma descoberta extraordinária sobre as práticas de registro de informações.

Datado há mais de 500 anos, o artefato conhecido com quipu apresenta um complexo sistema de armazenamento de informações, elaborado a partir de um emaranhado de cordões e nós, que reunia dados sobre assuntos diversos - desde o registro de bens materiais a eventos astronômicos.

Acreditava-se, com base em descrições de cronistas espanhóis, que pouquíssimas pessoas no Império Inca sabiam produzir quipus. A função era restrita a apenas alguns burocratas de alto escalão. 

A principal novidade, no entanto, é que, ao contrário de outros exemplares já relatados, esta espécime chama a atenção pela composição do cordão principal: cabelo humano. Isso porque, usualmente, os quipus eram constituídos por lã de lhama ou alpaca.

A inédita versão do sistema de escrita indica, portanto, que a tarefa de registrar informações, até então considerada um privilégio da elite, também fora desempenhada por plebeus, pessoas comuns da sociedade Inca.

O quipu em questão, uma mecha de 104 centímetros de cabelo humano, dobrada e torcida, datada de 1498 d.C., foi adquirido pela Universidade de St. Andrews, na Escócia.

Em um texto divulgado no site da instituição, a pesquisadora Sabine Hyland, que liderou a análise química, ressalta que o material continha um profundo significado simbólico no mundo andino e carregava "essência" de quem o manufaturava.

As amostras do exame aplicado no cabelo indicaram um cardápio rico em tubérculos, leguminosas e grãos, com pouca carne e milho, e nenhuma evidência de peixe. Este padrão alimentar é típico de um plebeu que vivia longe da costa, e não de um membro da elite, como era a crença tradicional.

A análise de isótopos de carbono, nitrogênio e enxofre no cabelo permitiu descobrir a dieta de quem doou a mecha para o quipu encontrado • Divulgação/Universidade de St. Andrews
A análise de isótopos de carbono, nitrogênio e enxofre no cabelo permitiu descobrir a dieta de quem doou a mecha para o quipu encontrado • Divulgação/Universidade de St. Andrews

Código secreto além da nobreza

A descoberta desafia a narrativa histórica de que apenas a elite, os chamados khipukamayuqs, eram responsáveis pela criação e manutenção dos quipus.

A civilização inca era predominantemente oral e não utilizava a escrita como se conhece hoje, tornando o quipu o principal meio de registros da época. O comprimento dos cordões, a quantidade de nós e a distância entre eles continham informações cruciais sobre quantidades, datas e tipos de materiais.

"Foi um choque total," disse Hyland à Science News. "Meu palpite é que era usado para registrar oferendas rituais. Deve ter sido algo muito especial para a pessoa sacrificar seu próprio cabelo."

O achado, publicado na revista Science Advances, é considerado inédito, já que é o único exemplar da era inca em que o cordão principal é inteiramente feito de cabelo.

A hipótese de que plebeus também produziam quipus pode abrir caminho para uma revisão de coleções inteiras de artefatos incas em museus, motivando a reinterpretação da história dessa civilização, a partir da voz de indivíduos que não foram contemplados pela narrativa tradicional.