Rainha de formigueiro gera machos de outra espécie para acasalar com filhas
Rainhas das formigas colhedoras ibéricas conseguem clonar machos de outra espécie para produzir operárias híbridas e perpetuar suas colônias

Se, na vida humana, algumas sogras tentam influenciar a escolha dos maridos de suas filhas, na biologia das formigas isso ocorre de uma forma que desafia nossa compreensão da reprodução, evolução e individualidade biológica: a rainha Messor ibericus gera seus futuros genros.
Uma equipe internacional de cientistas, liderada por pesquisadores da Universidade de Montpellier, na França, descobriu que alguns dos ovos postos pelas rainhas dessas formigas colhedoras ibéricas contêm machos de outra espécie, a formiga colhedora construtora (Messor structor).
O estudo, publicado recentemente na revista Nature, é o primeiro caso documentado em animais de uma espécie que produz obrigatoriamente descendentes de outra espécie, de forma natural. Além disso, responde a algumas perguntas sobre a presença de operárias híbridas em colônias de M. ibericus.
Formigas operárias executam funções essenciais como coletar alimentos, cuidar dos ovos e construir ninhos. Certas espécies, porém, não geram operárias via reprodução com machos da mesma espécie: ovos fertilizados geram apenas rainhas, e os não fertilizados resultam em machos reprodutivos.
De acordo com o novo estudo, as rainhas M. ibericus não conseguem produzir operárias através de reprodução com machos da própria espécie. No entanto, o que causou estranheza não foi o fato de haver operárias híbridas, mas o fato de elas serem encontradas em áreas onde não existiam colônias de M. structor.
Como as formigas M. ibericus clonam machos de outra espécie?
Até hoje, esse paradoxo geográfico fundamental permanecia sem solução. "Como evidência ainda mais convincente, operárias híbridas de primeira geração da ilha italiana da Sicília foram encontradas a mais de mil quilômetros de distância da ocorrência mais próxima conhecida de sua espécie paterna”, diz o estudo.
Buscando entender por que encontravam operárias híbridas de M. ibericus e M. structor em locais onde não havia machos dessa última espécie disponíveis na natureza, os autores realizaram um experimento controlado: isolaram colônias de M. ibericus em laboratório, para evitar qualquer tipo de contato com machos M. structor.
Observando detalhadamente os processos de postura dos ovos, reprodução e desenvolvimento, a equipe se surpreendeu com a ocorrência de híbridos de primeira geração surgindo nessas condições. Os pesquisadores descobriram que as rainhas de M. ibericus estavam clonando machos de M. structor!
Para isso, elas usam esperma antigo armazenado em suas espermatecas. Só que, diferentemente de um cenário ancestral, em que as rainhas de M. ibericus acasalavam com machos M. structor selvagens (principalmente na França oriental), agora produzem seus próprios machos da linhagem clonada.
No estudo atual, a análise genética dos clones revelou que seu DNA nuclear (de ambos os pais, que determina a espécie) era de M. structor, mas o DNA mitocondrial (herdado apenas da mãe) era de M. ibericus. Ou seja, esses machos têm corpo de uma espécie, mas mitocôndrias de outra, uma anomalia em condições naturais.
Essa estratégia evolutiva adaptativa permitiu às rainhas de M. ibericus um controle reprodutivo total, sem limitação geográfica. Essa incompatibilidade genômica nuclear-mitocondrial, segundo os autores, é exclusiva dos machos dessas colônias, não sendo encontrada em nenhuma formiga M. structor, de colônias da própria espécie.
Uma nova forma de reprodução animal

A forma de reprodução inédita adotada pelas formigas M. ibericus vai redefinir os conceitos fundamentais da biologia. Os autores do estudo já fizeram sua parte e cunharam um termo inteiramente novo para descrever esse fenômeno reprodutivo nunca antes documentado na natureza: xenoparidade.
Para os pesquisadores, as fêmeas de M. ibericus são xenóparas. Em outras palavras, elas precisam produzir indivíduos de outra espécie como parte de seu ciclo de vida. Em suma: a xenoparidade é a necessidade de propagar o genoma de outra espécie por meio de seus próprios ovos.
Diferentemente do parasitismo reprodutivo, em que algumas espécies exploram o sistema reprodutivo de outra para se beneficiar (como invasões de ninho e “roubo” de esperma), a xenoparidade é uma necessidade biológica. Os machos de M. structor não são um mero acidente, mas um requisito do ciclo de vida feminino.
Afinal, quem rege essa complexa “sinfonia reprodutiva” são as rainhas. Elas não só impõem o timing da produção e maturidade dos ovos masculinos, como também utilizam estrategicamente os machos, usando ora os de M. ibericus para gerar novas rainhas, ora os de M. structor clonados para produzir operárias híbridas.
Além de quebrar o paradigma fundamental de que organismos vivos produzem descendentes da mesma espécie, o estudo apresenta colônias que produzem uma diversidade inédita de indivíduos. Essa subversão das regras clássicas da biologia reprodutiva gera os primeiros superorganismos sociais que integram duas espécies diferentes.


