Análise: Diplomacia brasileira criou uma armadilha para si e caiu nela na Venezuela
![Mulher segura bandeira da Venezuela em Caracas Mulher segura bandeira da Venezuela em Caracas](https://www.cnnbrasil.com.br/wp-content/uploads/sites/12/Reuters_Direct_Media/BrazilOnlineReportWorldNews/tagreuters.com2021binary_LYNXMPEHB212V-FILEDIMAGE.jpg?w=1220&h=674&crop=1&quality=85)
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O governo brasileiro está reconhecendo Nicolás Maduro como o chefe de Estado da Venezuela. No entanto, já que o governo brasileiro não vai validar o resultado das eleições venezuelanas de 2024, está implícito que o Brasil reconhece Maduro como ditador daquele país. Em outras palavras: Maduro não venceu, mas ganhou.
Pelo Direito Internacional, o reconhecimento de um governo pode ocorrer por meio de duas formas: expressa ou tácita. A forma expressa se dá por escrito – publicando uma declaração ou nota diplomática. A forma tácita se dá pelo relacionamento com esse governo. Na prática, só muda o formalismo, os efeitos são os mesmos.
Conforme resume Hildebrando Accioly, em seu “Manual de Direito Internacional Público”, os Estados Unidos sustentam, desde a sua independência, que se deve reconhecer como legítimo o governo oriundo da vontade nacional, claramente manifestada.
A esse princípio foi adicionado, posteriormente, o da intenção e capacidade do governo de cumprir as obrigações internacionais do estado. A doutrina brasileira se aproxima muito dessa formulação, no entanto, historicamente o Brasil leva em conta, também, as seguintes circunstâncias:
- Primeiro, a existência real de governo aceito e obedecido pelo povo;
- Segundo, a estabilidade desse governo;
- Terceiro, a aceitação, por este, da responsabilidade pelas obrigações internacionais do respectivo estado.
É bastante questionável que o governo de Maduro seja “aceito pelo povo”, já que seu poder é imposto com punho de ferro, por meio da opressão. Maduro seguiu os passos de Hugo Chávez, cooptando as Forças Armadas da Venezuela.
O país é um dos que têm maior proporção de generais no mundo: são mais de 2 mil. Para fins de comparação, o Brasil tem cerca de 300 generais, embora a quantidade de militares nos dois países seja praticamente a mesma: 360 mil.
Promoções, benesses e salários comparativamente elevados para as maiores patentes tornam os militares parte fundamental do regime. A isso soma-se o temor de responderem pelos crimes contra a população.
Relatórios produzidos por uma missão criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) elencam os seguintes crimes cometidos há anos pelo aparato opressivo: tortura, espancamento, asfixia, violência sexual, prisões arbitrárias, censura, repressão e violações de direitos humanos.
Também é questionável que o governo seja estável, já que as pessoas que fogem do país denunciam os abusos do regime para se perpetuar no poder.
Segundo a Agência da ONU para as Migrações, em agosto de 2023, havia mais de 7,7 milhões de refugiados e migrantes venezuelanos em todo o mundo. A maioria deles vive em países da América Latina.
Desde 2017, mais de 800 mil venezuelanos entraram no Brasil, quase todos a partir de Roraima, que faz fronteira com aquele país. São 7,7 milhões de pessoas que fugiram de um país cuja população é de 28 milhões.
A estabilidade também não é percebida nas eleições. As últimas a que se pode creditar alguma legitimidade foram em 2015, quando a coalizão oposicionista conquistou 99 dos 167 assentos da Assembleia Nacional.
Essa oposição passou a levar questões contra o governo para o Supremo Tribunal de Justiça (TSJ). Maduro então iniciou um processo de aposentadoria dos juízes do TSJ e a substituição deles por correligionários seus. As eleições seguintes passaram a ser boicotadas pela oposição, que não encontrava condições justas para concorrer.
Por fim, é questionável que o governo Maduro aceite cumprir as “obrigações internacionais” da Venezuela. A dívida da Venezuela com o Brasil ultrapassa R$ 15 bilhões, na cotação de hoje.
Em dólares, são US$ 1,5 bilhão via BNDES, mais cerca de US$ 1 bilhão em exportações de produtos brasileiros ao país. Hoje não há qualquer expectativa de que o Brasil venha a receber esses valores. A Venezuela também não cumpre as resoluções da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Em agosto, os países-membro aprovaram por consenso a cobrança da publicação das atas das eleições presidenciais de 2024.
Maduro não publicou e não irá publicar as atas. Não fará isso, porque perdeu as eleições, conforme demonstra o Centro Carter, que foi um dos poucos observadores internacionais autorizados pela Venezuela para as eleições de 28 de julho de 2023.
Em outubro, o Centro Carter apresentou cópias feitas por conta própria das atas à OEA, explicitando que Edmundo González obteve mais de 67% dos votos e Nicolás Maduro conseguiu 31%.
A oposição tinha conseguido fotografar 80% das atas, que já demonstravam a vitória de González. O Centro Carter, no entanto, conseguiu registrar todas as atas, incluindo seus códigos QR. Trata-se de uma prova incontestável da vitória de González no pleito.
A ONU já havia atestado que as atas apresentadas pela oposição eram verídicas, com base em um relatório produzido por um painel de seus especialistas que observaram as eleições na Venezuela. Tanto os funcionários da ONU quanto os do Centro Carter tiveram que sair do país após as eleições.
Em 2023, Lula posicionou o Brasil como observador dos Acordos de Barbados. Os Acordos garantiriam que as sanções impostas à Venezuela pelos Estados Unidos, União Europeia e outros países fossem retiradas. Em troca disso, seriam promovidas eleições justas.
Maduro sempre criticou as sanções como principal motivo de empobrecimento do país, a despeito dos 300 bilhões de barris de petróleo confirmados – a maior reserva do mundo.
Apesar desse discurso, as sanções da União Europeia são apenas um embargo às armas e ao equipamento que o regime usa para repressão interna.
Foi imposta a proibição de viajar e o congelamento de bens de 54 funcionários responsáveis por violações de direitos humanos e por minar a democracia e o Estado de direito na Venezuela.
Por sua vez, os Estados Unidos impuseram sanções de bloqueio de bens a 11 indivíduos e 25 empresas que possuem ligações com o governo Maduro, designando-os como narcotraficantes.
Seja como for, é evidente que a retirada das sanções nunca foi uma prioridade para Maduro, pois bastaria que tivesse promovido eleições justas para que elas fossem eliminadas.
Ocorre que após as denúncias da oposição sobre a fraude nas eleições de 2024, bem como a apresentação de fotos das atas, não restou opção ao governo brasileiro, a não ser exigir a apresentação das atas eleitorais por parte de Maduro.
Isso, a despeito do partido de Lula, o PT, ter reconhecido a suposta vitória de Maduro, além de enviar representantes para sua posse, juntamente com o MST.
A opressão ditatorial de Maduro que se seguiu à eleição, com a prisão de mais de 2 mil opositores, sepultou qualquer avanço na reaproximação com a Venezuela, que vinha sendo operacionalizada pelo assessor Celso Amorim.
A relação entre Lula e Maduro continuou esfriando. Maduro acusou “a diplomacia brasileira” de ter vetado o ingresso da Venezuela no BRICs+. Também insinuou que Lula deveria “tomar um chá de camomila” para se acalmar, entre outras farpas lançadas publicamente.
Nesse contexto, e diante do rompimento das relações diplomáticas de vários países com a Venezuela, dentre os quais, Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai, o governo brasileiro deixou claro que não desejaria seguir pelo mesmo caminho.
Há cerca de 20 mil brasileiros na Venezuela e romper relações seria potencialmente prejudicial a eles. Além disso, em julho de 2024, o Brasil assumiu a Embaixada da Argentina na capital venezuelana.
O precedente do chefe da representação brasileira na Nicarágua, Breno Souza da Costa, em agosto, já havia deixado o Itamaraty em alerta. Ao não comparecer ao evento de aniversário da Revolução Sandinista, comemorado no dia 19 de julho, o diplomata brasileiro foi expulso pelo ditador Daniel Ortega.
Antes que o Brasil adotasse o princípio de reciprocidade e expulsasse a embaixadora da Nicarágua, Fulvia Castro, ela foi chamada de volta para Manágua.
O envio da embaixadora brasileira em Caracas, Glivânia de Oliveira, para a posse de Nicolás Maduro constitui um reconhecimento tácito do governo Maduro. A diplomacia ‘presidencial’ brasileira avançou demais e criou uma armadilha para si.
Historicamente, Lula foi um apoiador dos governos Chávez e Maduro. Receber este com honrarias de chefe de Estado em Brasília, em 2023, no entanto, foi um erro.
Também foi um erro ter relativizado o conceito de democracia. Já naquela época eram públicos os relatórios sobre as violações de direitos humanos, crimes generalizados e a opressão do ditador venezuelano.
Também era notório o fluxo de refugiados venezuelanos para o Brasil. Alguns poderiam acusar o governo brasileiro de ingenuidade, porém Lula seguiu apenas o modus operandi que sempre teve com os governos do país vizinho.
Fórum CNN
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**Texto em colaboração com Arthur Ambrogi – Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie.