Geyze Diniz
Coluna
Geyze Diniz

Cofundadora e presidente do Conselho do Pacto Contra a Fome, economista, conselheira da Península Participações e vice-presidente do Conselho do MASP

Fome de Soluções: O exemplo do banco de alimentos que desperdiça zero

No CEASA de Curitiba, um banco de alimentos garante que nenhum produto seja desperdiçado

Iniciativa do Ceasa de Curitiba inspirou a criação do Projeto Ceasas para outros centros de abastecimento
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Visitando a CEASA de Curitiba, fui surpreendida por uma cena rara: um sistema onde, literalmente, nada se perde. Nada. Em um país onde mais de 55 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas todos os anos, o que representa cerca de 1/3 de toda a produção nacional de alimentos — enquanto muitos ainda se deparam com seus pratos vazios —, encontrar um lugar que trata o alimento com esse nível de respeito me inspirou a ponto de querer escrever sobre o assunto.

Dados indicam que 84% do desperdício acontece antes do alimento chegar à casa do consumidor, de modo que 21,5% dos alimentos são desperdiçados na etapa de armazenamento – Manufatura e Abastecimento (Ceasas). Enquanto isso, mais de 64 milhões de brasileiros vivem em algum grau de insegurança alimentar e nutricional, ou seja, enfrentam dificuldades para garantir uma alimentação adequada, saudável, suficiente e segura. Dentre estes, 8,7 milhões de brasileiros vivem no que chamamos de insegurança alimentar grave, que é a situação de fome. São aquelas pessoas que não comem hoje nem sabe se comerão amanhã.

O Brasil conta com políticas públicas específicas para enfrentar essa situação, tal como o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), que conecta programas e políticas das áreas da saúde, educação, agricultura e assistência social, sendo os bancos de alimentos equipamentos centrais nesta temática. A implementação dos bancos de alimentos é uma estratégia consolidada na política de segurança alimentar e nutricional (SAN). Contudo, a realidade mostra um desafio ainda gritante: atualmente, apenas cerca de 3% da população afetada pela insegurança alimentar grave é atendida por esses equipamentos.

Não podemos esquecer que o combate à fome não pode ser dissociado da luta contra o desperdício. Os dois fenômenos, ainda que pareçam opostos, são faces da mesma moeda: a má gestão dos nossos recursos, a invisibilidade dos mais vulneráveis e a falta de prioridade pública e privada com o básico: o alimento.

Por isso conhecer a experiência do CEASA de Curitiba foi uma verdadeira inspiração, onde o foco do desperdício é zero. Um feito admirável no Brasil, e que precisa ser replicado. O que é comercializado pelos lojistas da CEASA segue seu caminho natural. Já o alimento que perdeu valor de mercado, mas ainda está em boas condições, é direcionado ao banco de alimentos instalado dentro da própria CEASA, e separado pelos times do banco, formado por apenados do sistema prisional. Os alimentos mais nutritivos são doados a instituições cadastradas. E o que já não serve mais para o consumo humano? É doado para consumo animal. E se sobrar algo? Passa por um biodigestor, gerando energia limpa. E o que ainda sobra? Vai para adubo. E nada vai para o aterro.

Essa engenharia da solidariedade é mais simples do que se imagina de ser colocada em prática e extremamente efetiva no combate ao desperdício, além de alimentar um número maior de pessoas e reinventar o fim da linha dos alimentos. Ou seja, atua em várias pontas: combate à fome, à insegurança alimentar, evita o desperdício de alimentos e contribui para não poluir o meio ambiente.

A CEASA de Curitiba é um excelente exemplo de que, com boas práticas replicáveis no que tange processamento de alimentos, inclusão socioeconômica, iniciativas de bioenergia com foco em resíduo zero, é possível transformar o desperdício de alimentos em uma ferramenta poderosa de redução da fome e melhoria das condições de vida, ao mesmo tempo em que se promove uma maior conscientização sobre a importância do reaproveitamento e da sustentabilidade.

A partir deste contexto, o Pacto Contra a Fome resolveu desenvolver o Projeto Ceasas, que busca possibilitar a implantação, modernização e fortalecimento de estratégias de redistribuição de alimentos em outras Centrais de Abastecimento (Ceasas), por meio de Bancos de Alimentos, com foco na redução de perdas e desperdícios e na promoção da segurança alimentar e nutricional para populações em situação de vulnerabilidade. E como faremos isso? Por meio da sistematização de metodologias que funcionam e boas práticas que devem ser replicáveis para todo o país, assim como cálculos de investimentos e operacionalização de políticas públicas e advocacy.

A fome é uma ferida aberta no Brasil, uma ferida que convivemos há tanto tempo que, por vezes, nos esquecemos do quanto ela pode ser dolorosa. Uma única pessoa passando fome já deveria nos tirar o sono. Milhões delas – com muitas crianças, idosos e gestantes dentro dessa triste estatística – deveria fazer com que o país parasse e tratasse esse assunto com a urgência que ele merece.

É urgente que ampliemos esse tipo de visão para todo o país. Não faz sentido que toneladas de alimentos que temos para consumo humano, ainda terminem em aterros enquanto milhões vão dormir com fome. Quem não se lembra ou nunca viu uma cena de pessoas procurando comida em lixões a céu aberto? Precisamos encarar o desperdício como um agravante ético e ambiental da insegurança alimentar.

Como dizia José Saramago, a fome é obscena. Num país que produz tanto, é inaceitável que alguém ainda morra de fome. O Projeto Ceasas nasce dessa indignação — para transformar o desperdício em esperança. Onde muitos veem sobra, eles vêm oportunidade. Resgatar alimentos é mais que logística: é um gesto de justiça. Escolher o desperdício zero é escolher um futuro mais humano e sustentável.