José Manuel Diogo
Coluna
José Manuel Diogo

O homem de lá e de cá. Presidente da APBRA, diretor da Câmara Luso Brasileira em Lisboa. Professor universitário no IDP em Brasília. Escritor. Especialista em relações luso-brasileiras

O formulário do medo

Quando um país volta a pedir a jovens de 18 anos que preencham um formulário declarando a própria disposição para servir as forças armadas, não está apenas a recolher dados: está a confessar que o mundo deixou de ser confiável

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Há símbolos que dizem mais do que pronunciamentos. O formulário alemão parece banal — papel, margens, perguntas burocráticas. Mas carrega um peso histórico que nenhum chanceler gostaria de assumir. Pergunta-se sobre saúde, mente, corpo e, sobretudo, vontade. A “vontade” é a palavra que mais incomoda: não se trata de aptidão física, mas de disposição moral para entrar num conflito que ninguém quer nomear. É um gesto delicado da Alemanha, que tenta conciliar a memória do século XX com a urgência do século XXI.

Durante anos, a União Europeia acreditou poder comprar estabilidade com comércio, tratados e energia barata. Era a ilusão confortável de uma época em que a globalização parecia suficiente para impedir guerras. A invasão russa da Ucrânia destruiu esse pacto silencioso. A Alemanha, que suspendeu o serviço militar em 2011 para proteger o país de si próprio, vê-se agora a reconstruir o que acreditava ter superado. A reabertura dessa porta é uma confissão de vulnerabilidade; e vulnerabilidades nunca são proclamadas, apenas reveladas nos detalhes.

É por isso que este pequeno formulário diz tanto. Ele não convoca, mas pressiona. Não obriga, mas vigia. Não impõe, mas espera. Tenta recrutar sem parecer que recruta. É a solução paradoxal de um país que precisa reforçar o exército sem reabrir feridas morais, e de um continente que tenta proteger-se sem admitir que o perigo já lhe bate à porta.

Há quem argumente que um modelo voluntário é insuficiente diante da Rússia. Talvez seja. Mas reduzir a discussão ao número de recrutas é ignorar a essência do problema: a Europa não está apenas a reforçar capacidades militares, está a tentar reconstruir certezas. A geração que recebe este formulário cresceu a acreditar num futuro verde, global e pacífico. Agora é chamada, mesmo que indiretamente, a contemplar a possibilidade de conflito — algo que parecia pertencer aos livros de história, não às notificações do correio.

O questionário alemão é, portanto, mais do que uma triagem administrativa: é um espelho. Ele reflete o medo de um continente que envelhece, divide-se politicamente, depende de alianças frágeis e descobre, talvez tarde demais, que a paz não é um estado natural, mas uma disciplina. Exige preparação, investimento e, sobretudo, coragem cívica para encarar o mundo como ele é.

Às vezes, aquilo que revela uma época não são tanques, nem fronteiras em chamas. É apenas uma folha de papel, com uma pergunta simples, que a Europa tentou evitar por demasiado tempo.