José Manuel Diogo
Coluna
José Manuel Diogo

O homem de lá e de cá. Presidente da APBRA, diretor da Câmara Luso Brasileira em Lisboa. Professor universitário no IDP em Brasília. Escritor. Especialista em relações luso-brasileiras

Trump e Mamdani. O mundo entre o Império e a Cidade

Um ano após a reeleição de Trump e com o governo em shutdown recorde, a vitória de Zohran Mamdani em Nova York revela um país dividido entre paralisia e reinvenção

Donald Trump e Zohran Mamdani
Donald Trump e Zohran Mamdani  • 10/10/2025REUTERS/Kent Nishimura Reprodução/Facebook
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No mesmo dia em que se completou um ano da reeleição de Donald Trump, os Estados Unidos vivem o mais longo shutdown da sua história: 36 dias de paralisia administrativa, com milhares de funcionários públicos sem salário e serviços essenciais suspensos. O país que durante décadas foi o laboratório do Estado moderno parece testar agora os limites da sua própria governabilidade.

Nesse cenário, a eleição de Zohran Mamdani, imigrante e socialista, como prefeito de Nova York, ganha valor de metáfora. Enquanto Washington se fecha, a maior cidade americana se abre. O contraste é evidente: um centro federal paralisado por impasses orçamentários e ideológicos, e uma metrópole que decide experimentar um modelo de gestão ancorado na redistribuição, no transporte público gratuito e no alívio de custos para as famílias.

Ao subir ao palco em Brooklyn, Mamdani disse, com ironia e esperança: “So Donald Trump, since I know you’re watching, turn the volume up.” A frase ecoou muito além da cidade. Era um convite — ou talvez um desafio — para que a América volte a escutar-se. Num país em que o ruído político se tornou ensurdecedor, o gesto de “aumentar o volume” é paradoxalmente o de voltar a ouvir: os que ficaram à margem, os que sustentam as cidades e os que já não acreditam que a democracia lhes pertence.

Desde a pandemia, a política americana oscila entre dois polos: a radicalização nacionalista e o municipalismo pragmático. Trump governa para o medo — o medo da perda, da imigração, da desordem — enquanto as cidades respondem com uma política de sobrevivência prática. Nova York, Chicago e Los Angeles tornaram-se laboratórios de resistência institucional, sustentando uma economia local e uma cultura política que ainda acredita na diversidade e no investimento social como vetores de estabilidade.

O shutdown de 36 dias é o retrato mais visível de uma guerra que os Estados Unidos travam consigo próprios. O bloqueio orçamental revela não apenas uma crise política, mas uma disputa filosófica sobre o papel do Estado. Para Trump e os republicanos que o acompanham, o governo é o problema; para a nova geração de prefeitos progressistas, o governo local é a última linha de defesa da coesão social.

A vitória de Mamdani pode ser lida como um ponto de inflexão nesse processo. Mas ainda é cedo para falar em virada histórica. O que se desenha, por ora, é um mapa dividido entre um governo central com problemas e um arquipélago de cidades que se recusam a seguir o mesmo rumo. O destino da América, como sugeriu um analista da CIA citado pelo jornal português Público, talvez já esteja traçado; o que está em disputa agora é apenas a velocidade.

No plano internacional, esse impasse interno produz um duplo efeito. De um lado, abre espaço para a China e outros atores asiáticos redefinirem a arquitetura econômica global, com menor dependência do dólar e maior autonomia tecnológica. De outro, obriga a Europa e a América Latina a repensar alianças, políticas de defesa e instrumentos multilaterais sem o tradicional amparo americano.

No fim, talvez o verdadeiro sentido da frase de Mamdani seja esse: “turn the volume up” não como grito, mas como gesto de atenção. O som que vem das cidades pode não ser o da revolução — mas o de uma América tentando reaprender a escutar o próprio futuro.