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    Miguel Nicolelis
    Coluna

    Miguel Nicolelis

    Neurocientista e escritor. Professor Emérito de Neurobiologia, Duke University. Fundador Instituto Nicolelis de Estudos Avançados do Cérebro da ASSDAP

    OPINIÃO

    O que ainda nos une?

    Eu não tenho dúvida alguma em afirmar que a minha descoberta do que é ser brasileiro se deu no final da tarde de 21 de junho de 1970, em plena Avenida Paulista, na cidade de São Paulo. Esta epifania inesquecível, experimentada por um menino de 9 anos, se deu momentos depois da Seleção Brasileira trucidar a mítica Azzura italiana no estádio Azteca, na cidade do México, na final da Copa do Mundo. Além de outras mil razões, este jogo ficou imortalizado pela criação do gol mais sensacional da história dos Mundiais, construído, de pé em pé, pela perfeita sincronia da mais plástica Brainet futebolística jamais vista neste canto da Via Láctea: a Seleção Canarinho de 1970.

    No último movimento, desta verdadeira sinfonia, um certo extraterreste de carteirinha, conhecido pela alcunha de Pelé, – o segundo maior jogador de todos os tempos depois do inigualável Ademir “Divino” da Guia – , usou apenas um toque, tão gentil, quanto letal, para colocar a bola, sua velha conhecida, num ponto futuro espaço-temporal deste nosso Universo Relativístico, para que um outro celerado, chamado Carlos Alberto, simplesmente liberasse um petardo nuclear, que não só estufou as redes italianas de forma avassaladora, mas também conduziu o pobre guarda-metas Albertosi a um estado de catatonia quase irreversível.

    Pois bem, no momento em que o juiz apitou o final daquela partida – depois de ignorar um pênalti claro no terceiro maior jogador de todos os tempos, o meu querido amigo Roberto “patada Atômica” Rivelino, ao meu redor, do nada, toda São Paulo explodiu num bombardeio de rojões e gritos de celebração que eu jamais ouvira na vida. Entusiasmada no limite da euforia, mesmo sem entender bulhufas das regras do ludopédio e vagamente reconhecer quem era o Brasil e quem era a Itália no confronto recém-terminado, dona Giselda, minha cúmplice desde os tempos intrauterinos, decidiu reunir toda molecada da vila onde morávamos, incluindo alguns primos incautos que se encontravam na nossa casa, e de um bote só colocá-los dentro do seu Fusca azul-marinho, modelo 1968. Objetivo: dirigir toda esta turba mirim rumo a Avenida Paulista para a celebração da conquista do Tri!

    Do trajeto pelo bairro de Moema, eu não me lembro de nada. Como Dona Giselda, dirigindo colada ao volante e na extrema velocidade de 25km/h conseguiu chegar a tempo no bulevar mais emblemático dos paulistanos, eu não faço a menor ideia. A única memória daquele final de tarde e princípio de noite que se mantém acesa até hoje na minha mente foi que, do nada, eu finalmente havia entendido o que era ser brasileiro. De repente, aquele Fusca cheio de futuro e inocência se viu tragado por um mar de verde-amarelo, por uma multidão de seres humanos tresloucados de felicidade, todos desconhecidos uns dos outros, mas completamente amalgamados pela realização de pertencer a algo muito maior do que a vida individual de cada um deles. A sensação de pertencer a uma comunidade que acabara de conquistar o mundo, não o real, mas algo muito mais poderoso: o mundo imaginário do futebol.

    Agora, parte integral desta verdadeira colmeia verde-amarela, que não se cansava de cantar, chorar, vibrar, se abraçar e se beijar – nunca vi tanta gente se beijar como naquela noite – enquanto desfilava pela passarela improvisada, como uma gigantesca escola de samba orgulhosa de ser parte de algo que claramente lhe conferia um sentido existencial vital; um consenso, uma cola social que parecia fazer com que todos esquecessem ou mesmo ignorassem que ali reunidos vivia um povo em meio a um violento estado de exceção, em plena ditadura militar, que silenciosamente desaparecia e ceifava vidas na surdina da noite e do dia.

    Para um menino de 9 anos, sentado no capô do seu carro abre-alas – o Fusca azul-marinho de Dona Giselda – desfilando pela Avenida Paulista, totalmente extasiado com as cores, os sons, e o sabor sem igual de um pertencimento até então desconhecido, finalmente o Brasil se materializava como algo concreto na sua mente e, provavelmente, na mente de todos os passistas de ocasião que o circundavam. A partir daquela noite memorável, o Brasil deixou de ser uma mera palavra nas aulas de história ou moral e cívica do Grupo Escolar Napoleão de Carvalho Freire, saindo de um casulo impessoal para se transformar num amor tangível e incondicional para toda uma vida.

    Depois de percorrer todo o mundo por mais de 30 anos, como parte das minhas aventuras científicas, desde o início da pandemia de COVID-19 no Brasil no final de fevereiro de 2020, eu me vi obrigado pelas circunstâncias a permanecer em São Paulo pelo maior período de tempo desde a minha mudança para os Estados Unidos em 1989. Trabalhando diariamente como codiretor do Comitê de Combate ao Coronavírus do Consórcio Nordeste, eu me deparei com uma realidade diametralmente oposta à vivida naquela noite junina dos idos de 1970. Para minha surpresa, mesmo num momento de crise absoluta foi quase impossível encontrar qualquer coisa que unisse os brasileiros de forma consensual.

    Nem mesmo a mais letal pandemia em 100 anos, que gerou o maior desastre humanitário da história brasileira – depois do genocídio indígena do período colonial e da escravidão – foi capaz de unificar a sociedade brasileira – assim como sociedades mundo afora, diga-se de passagem – num objetivo comum ou numa visão consensual de como proceder enquanto nação. O negacionismo rampante, alimentado entusiasticamente pelo Governo Federal à época, bem como divisões ideológicas e de visão de mundo se transformaram em obstáculos intransponíveis, levando ao maior processo de fragmentação jamais visto neste lado do Equador. Sem querer examinar novamente as causas deste processo de tribalização sem precedentes – algo que eu já discuti na minha primeira coluna para a CNN Brasil – que afeta não só o Brasil, mas todo o mundo, o meu objetivo aqui é apenas levantar a questão central que eu acredito ser o fulcro do nosso presente dilema existencial.

    O que nos une neste momento?
    Enquanto membros de uma família, de um grupo social, de habitantes de um país, ou mesmo enquanto parte de uma espécie que enfrenta dezenas de desafios existenciais que podem, em poucas décadas, nos levar a completa extinção e a destruição de qualquer forma de vida no planeta?

    Qual é a cola que nos faz ainda sentir parte de algo maior do que a nossa humilde e passageira existência individual? O que representa ser brasileiro hoje em dia? Certamente, não a camisa verde-amarela e muito menos a Seleção Brasileira de futebol (Vai pra casa, Dorival!). Mas o que realmente faria com que um menino de 9 anos, em pleno século XXI, sentasse no capô de um carro, ou no celim da sua bicicleta ou do alto do seu skate, e de repente sentisse lágrimas de pura felicidade brotarem dos seus olhos ao constatar que, ele sim fazia parte de algo muito maior, algo muito mais sublime e inexaurível que a sua mundana vida cotidiana cheia de percalços e incertezas?

    Sinceramente, neste momento, eu não tenho uma resposta satisfatória para esta indagação primordial. Pior ainda que assumir esta lacuna, é constatar que os fatos recentes indicam que muito pouca gente parece estar dando bola para esta verdadeira desintegração do imaginário humano coletivo. Uma verdadeira pandemia de descrença no poder transformador e inovador, amplamente demonstrado ao longo da nossa história, das explosões criativas que grandes grupos sociais foram capazes de parir ao longo dos milhões de anos desde que decidimos descer das árvores e nos embrenhar, confiantes e inocentes, pelas savanas do desconhecido.

    O que Genghis Khan, o grande líder Mongol, pensaria de nós, ao saber que diferente dele e de seu povo que abraçaram o último Deus analógico não antropomórfico, o “Eterno e Imenso Céu Azul”, como forma de expressar a crença dominante da estepe da Ásia Central dos século XII-XIII de que toda humanidade deveria viver como parte de uma única sociedade e cultuar o mundo natural ao seu redor, em pleno século XXI a humanidade decidiu renunciar de vez a fórmula de sucesso, que nos permitiu chegar até aqui, e sepultar o coletivo em prol do individual? Norbert Elias, o famoso sociólogo britânico-alemão certamente estaria à beira de uma crise de nervos ao constatar esta triste realidade do estado da humanidade.

    Mas nada é tão ruim que não possa piorar, já diria o meu pai corinthiano. Poucos dias atrás, ouvindo o noticiário bem próximo da mesma Avenida Paulista, que nem de longe lembra a de outrora, eu me dei conta que, inconformados com o resultado da última eleição presidencial brasileira, um grupo de militares de alta patente, apoiados por um bando de civis seus acólitos, planejou um golpe de estado – mais um – cujo objetivo central seria tomar o poder e assassinar não só os Presidente e vice-Presidente eleitos, mas também um Ministro do Supremo Tribunal Federal.

    Muito pior do que tomar ciência da magnitude e da enorme lista de envolvidos neste plano sinistro foi constatar que, diferentemente de décadas atrás quando tal revelação certamente causaria uma comoção nacional, levando dezenas ou mesmo centenas de milhares de pessoas por todas as ruas de todo país, exigindo a prisão e punição exemplar dos envolvidos na conspiração criminosa, cuja única tipificação legal aceitável é a de crime de traição contra o Brasil, nenhuma reação indignada de qualquer monta emergiu da sociedade civil brasileira, até o momento.

    Talvez seja a proximidade da Black Friday. Ou mesmo uma nova série imperdível da Netflix. Ou talvez, a crença de que as enormes e quase insuperáveis dificuldades do sobreviver cotidiano no mundo atual não nos permitam mais dedicar qualquer tempo, esforço ou atenção para defender abstrações, como o conceito de democracia, que um dia serviram de alicerce de um imperfeito contrato social. Aparentemente, este contrato simplesmente prescreveu por ter se tornado totalmente irrelevante para boa parte da humanidade. Morto de morte morrida, como dizia minha avó.

    Assim, no frigir dos ovos, parece quase óbvio dizer que, pelo andar da carruagem, as chances de algum neto meu, ou de qualquer um de vocês, meus caros leitores, um dia desfilarem no capô de um fusca, no meio de uma multidão, e descobrirem que existe aqui fora, neste vasto Universo, algo muito mais exuberante e cativante do que apenas o “Eu” se reduziram exponencialmente.

    Quem viu, viu. Quem viver, talvez não veja mais.