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    “Estou tentando angariar gente que acredita no Brasil”, diz Valter Hugo Mãe

    À CNN, o autor português fala de seu novo livro, escrito após uma temporada na Amazônia, e diz que deseja conversar sobre um "Brasil que a gente precisa muito que dê certo", na Bienal do Livro de SP

    Fernanda PinottiLuana Franzãoda CNN , Em São Paulo

    O escritor português Valter Hugo Mãe ainda se emociona todas as vezes que o piloto do avião anuncia a aterrissagem no Brasil.

    Foi assim que se sentiu na última semana, ao chegar em São Paulo para participar da Bienal do Livro de 2022, que começou no sábado (2).

    Mãe acompanha uma caravana de mais de 20 escritores portugueses que vieram para o evento, além do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa. O país é o convidado de honra desta edição da Bienal, que também celebra os 200 anos da Independência brasileira.

    Para ele, o encontro entre os dois países é importante e simbólico. “Temos uma história longa e intrincada, mas nem sempre percebemos aquilo que talvez devêssemos saber uns dos outros”, disse.

    Em conversa com a CNN, o autor relembrou a primeira vez que chegou ao país, com pouco mais de 30 anos. “Me recordo do espanto em chegar num lugar intrincado à minha identidade, mas que podia ser só uma fantasia na minha cabeça.”

    Além de ler poetas brasileiros – com destaque para “a maravilhosa” poetisa mineira Adélia Prado –, Mãe passou a adolescência escutando Legião Urbana e aprendeu sobre o que era “ser um casal” com Sônia Braga no papel de “Gabriela”, quando a novela foi exibida em Portugal nos anos 1970.

    O Brasil está tão presente na vida de Valter Hugo Mãe, que ele decidiu retratar uma tribo indígena fictícia em seu último romance, que se passa na Amazônia. “As Doenças do Brasil” é uma tentativa de contar uma história brasileira pelo ponto de vista dos povos originários.

    Nesta entrevista, o escritor português, que também se considera um pouco brasileiro, falou sobre sua relação com o país que ele sonhava conhecer desde a adolescência, o desafio em retratar outras culturas sem reforçar estereótipos e o processo de adaptação de seus livros para o cinema.

    O sonho de estar no Brasil

    Valter Hugo Mãe sonhou com o Brasil durante toda a adolescência, mas só desembarcou no país pela primeira vez com pouco mais de 30 anos.

    “Achei que nunca teria dinheiro para pegar um avião e atravessar o Oceano. Achei que leria Adélia Prado a vida inteira, mas jamais estaria no país de Adélia Prado, jamais poderia ver o que ela viu”, disse, se referindo à poetisa mineira que descobriu ainda jovem.

    Mãe explicou que, entre os anos 1970 e 80, era como se o Brasil ocupasse Portugal culturalmente. Sua geração cresceu consumindo as novelas, a música e a literatura brasileira.

    Ele relembra o impacto da exibição da novela “Gabriela”, protagonizada por Sônia Braga, no país, em 1977. “A novela produziu uma verdadeira educação para a libertação do corpo da mulher, para a libertação do que pode ser um casal.”

    Mãe chegou a comparar essa relação com o que ocorreu entre Grécia e Roma: “Roma, tendo levado o seu poder para cima da Grécia, acabou por voltar mudada pela cultura grega. É como se o Brasil fizesse um certo retorno a Portugal.”

    Foi com a literatura brasileira que o autor aprendeu a usar a língua portuguesa “sem muita disciplina”.

    Ferreira Gullar, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa são alguns dos autores que compunham a biblioteca da adolescência de Hugo, além da já citada Adélia Prado, a quem ele “ama de paixão”.

    “Com os autores brasileiros entendi que a língua deveria ser como um território profundamente livre, que estivesse disponível para todas as hipóteses”, explicou.

    É claro que amo muitos poetas portugueses, mas os brasileiros influíram muito no meu modo de escrever. Eles ajudaram-me que eu não fosse apenas mais um escritor português, mas talvez um escritor bastante esdrúxulo, bastante livre.

    Valter Hugo Mãe

    Mãe destacou que também ama os poetas de sua terra, mas compreende porque a cultura portuguesa é pouco consumida pelos brasileiros. Apesar de sentir pena, ele encara o processo como inevitável considerando que um país foi colonizado por outro.

    “Acho natural que isso aconteça, faz parte da necessidade de autonomia. Se eu tivesse ficado preso por 300 anos na casa de alguém, quando eu saísse, fugiria na direção contrária”, explicou.

    O autor se emocionou ao relembrar sua primeira experiência no Brasil. “Espanto” foi uma das primeiras reações que teve ao se perceber do outro lado do Atlântico: “Era um lugar que estava intrincado com a minha identidade, mas que podia ser só uma fantasia na minha cabeça, que só imaginava como seria”.

    Mãe descreve como “privilégio” a oportunidade de ter visitado o Brasil muitas outras vezes ao longo dos últimos anos, e revelou que “sempre chora um pouco” quando o piloto do avião anuncia o pouso nas terras sul-americanas.

    “Sempre lembro que isso, para mim, representa um sonho. Então, por mais vezes que venha ao Brasil, eu sei que estou vivendo um sonho”, declarou.

    O escritor disse que espera que a Bienal do Livro sirva para iniciar um diálogo sobre o país que queremos construir. “Espero que a gente converse sobre um Brasil que existiu no passado, cuja história tem muito a ver com Portugal, mas também sobre um Brasil que a gente precisa muito que dê certo”, falou.

    Mãe se considera um “crente” no país, e disse sorrindo que sua missão “quase evangelizadora” é a de angariar gente que acredite no Brasil.

    “Sempre fui português, mas sou um pouco brasileiro, porque a cultura também é uma forma de criar cidadãos, não é?”, declarou.

    O desafio de representar outros povos

    Valter Hugo Mãe entregou “As doenças do Brasil” (Editora Biblioteca Azul) às prateleiras em 2021. A obra se passa na Amazônia e relata o encontro entre o negro escravizado Meio da Noite, que ao fugir se deparou com a aldeia indígena dos abaeté, e o mestiço Honra, que vive na aldeia.

    “É um livro muito delicado de ser escrito por um português, porque é uma tentativa de contar uma história do Brasil que seja descolonizada. Contada pelos povos originários e não pelos povos ocupantes”, explicou.

    “A nossa normalidade pode ser simplesmente um erro para outras pessoas. Por uma diferença de mentalidade, por vezes não entendemos que podemos estar criando uma ofensa, uma ideia xenófoba ou racista”, disse sobre o desafio de retratar outros povos.

    Ele disse que se policiou muito ao escrever o romance, e buscou levar a narrativa para “caminhos mais luminosos”, na tentativa de não repetir estereótipos.

    Antes de escrever “As doenças do Brasil”, o autor foi à Amazônia. Segundo ele, a viagem não serviu apenas para inspirar sua próxima obra, mas também para pedir uma espécie de “permissão” para retratar a floresta.

    “Viajei (para a Amazônia) não sei se exatamente para pesquisar, mas talvez para pedir ‘licença, senhor’. Achei que precisava ir à Amazônia para pedir licença às tanajuras e às maçarandubas, às cotias e aos jacarés. Acho que fui olhar um pouco na cara dos bichos e na cara da mata, para que a mata me permitisse escrever o meu livro em paz.

    Valter Hugo Mãe

    “Deslumbrante e assustadora” é como descreveu a floresta amazônica, e explicou que um pouco desse sentimento opressor e maravilhado sangrou na escrita do livro.

    “O impacto da floresta parece uma assombração, ela nos envolve como se nós estivéssemos numa certa fantasmagoria. Acho que isso é uma das coisas que mais se sente para quem lê o meu romance”, explicou.

    O futuro e suas obras em outros formatos

    Para escrever o romance “Homens imprudentemente poéticos” (Editora Biblioteca Azul), lançado em 2016, Hugo Mãe também viajou ao Japão para contar a história de uma pequena aldeia no país.

    Quando perguntado se tem alguma viagem planejada para um futuro lançamento, ele garantiu que uma nova obra está a caminho.

    O autor pretende completar uma série de romances sobre ilhas e ausências, e a próxima etapa se passa em casa: na Ilha da Madeira, em Portugal.

    “Já estou escrevendo um romance novo, assim, meio ao meu jeito. Escrevo e jogo fora, mas é o meu jeito de ir chegando mais perto”, revelou.

    Retratar a vida perto de onde nasceu pode não trazer os desafios de ser fiel a um povo de outra cultura, mas Mãe garante que seus livros têm o mesmo propósito. “A minha vontade é construir alguma coisa profundamente integradora, profundamente amorosa, de um humanismo essencial.”

    Além do livro novo, Mãe também revelou as dificuldades envolvidas em transpor suas obras para o cinema. Os romances “Filho de mil homens” (Editora Biblioteca Azul, 2016) e “A máquina de fazer espanhóis” (Editora Biblioteca Azul, 2016) estão em processo de adaptação para virar filme.

    “Há um processo longo com duas produtoras, mas vai acontecer mais cedo ou mais tarde”, disse.

    O autor contou que o cinema torna possível algo que a literatura não permite: o apoio de outros profissionais para engrandecer a obra. “No romance ou na poesia, a nossa conexão [com o leitor] é direta, não tem intermediação. Se o nosso livro for uma porcaria, não vai ter desculpa não”, falou.

    Ele explicou que sentiu isso durante o longa-metragem “Surdina” (2019, Portugal), filme de Rodrigo Areais, com roteiro assinado por Valter Hugo Mãe. “O elenco era muito forte, tive a sensação de que até as passagens mais frágeis do texto foram transformadas em uma coisa muito bela pelos atores.”

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