Uma ode ao direito de defesa
“Eu acredito no que disse o advogado na tribuna e nos autos”, foi assim que a ministra Daniela Teixeira se manifestou ao proferir o seu voto no Agravo Regimental em Habeas corpus n.º 866.410/SP, na sessão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça realizada, em 28 de novembro de 2023.
A manifestação da ministra sobre a declaração do advogado, muito embora tenha se destacado no julgamento, não deveria ser isolada na prestação jurisdicional. Isso porque ela tem apenas o condão de reforçar a fé pública que é garantida legalmente aos que exercem a advocacia.
O reconhecimento da fé pública aos advogados – e a consequente desburocratização do processo, tornando-o menos custoso e mais célere para o cidadão – ainda que tenha avançado, carece de reforço legal e melhor compreensão pelos operadores do direito e pela sociedade.
O advogado exerce uma função qualificada no capítulo IV da Constituição como essencial à Justiça, competindo-lhe não somente a garantia dos direitos daqueles a quem representa, mas também do estado democrático de direito, como agente fiscalizador e com participação ativa nas demais funções e Poderes.
Conforme esclarece Flávio Pansieri, “mais do que uma profissão a advocacia é um munus indispensável à administração da justiça, revestida de prerrogativas que assistem diretamente à sociedade, permitindo que esta possa se sentir segura por intermédio da atuação do advogado que dê guarida à liberdade e seus direitos seja administrativa, judicialmente ou pelo simples e fiel patrocínio dos negócios jurídicos onde a figura do advogado se torna imprescindível.”
O art. 133, da Constituição Federal e o art. 2º, da Lei Federal n.º 8.906/1994 (Estatuto da OAB), reconhecem a indispensabilidade e imunidade do advogado, prevendo também que “seus atos constituem múnus público”.
Isso tem sua razão de ser: a advocacia é pressuposto da formação e regular funcionamento do Poder Judiciário. É dizer: a função de julgador depende da figura do advogado – “nemu iudex sine actore” (não há juiz sem autor) -, dada a sua natureza inerte, que só permite que intervenha quando provocado pelas partes em disputa.
Ocorre que só com o advento das Leis n.º 10.352/2001 e 11.382/2006 conferiu-se expressamente aos advogados a possibilidade de declaração de autenticidade de cópias de peças de processo, alterando-se a redação, respectivamente, dos arts. 544, §1º e 365, IV, do Código de Processo Civil (CPC) de 1973, então vigente à época, o que foi mantido no CPC/2015 (p. ex. nos arts. 425, IV, 522, parágrafo único, entre outros).
É que a fé pública é justamente isso, a confiança e presunção de autenticidade e veracidade dos atos praticados por aqueles que desempenham uma função pública, como no caso dos advogados (art. 2º, da Lei n.º 8.906/1994).
Recentemente, o Projeto de Lei n.º 1259/2022, que busca alterar a Lei n.º 8.906/1994, foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados para reconhecer, expressamente, a fé pública do advogado e o direito de ter reconhecida a autenticidade de quaisquer documentos que juntar em processos judiciais e administrativos.
É salutar o movimento legislativo, tal qual a declaração da Ministra Daniela Teixeira, em reforçar a fé pública dos advogados, que são porta-vozes do cidadão e dignos da confiabilidade não só dos jurisdicionados que os constituíram, mas especialmente do Poder Público.
Aliás, a manifestação da ministra está em total harmonia com o seu depoimento publicado antes de sua posse no Superior Tribunal de Justiça: “Eis, pois, a segunda razão pela qual troco a beca de advogada pela toga da magistratura: levar o olhar de quem conhece a realidade atual da advocacia e da cidadania – porque o mundo é muito diferente daquele de 1988 – para um Tribunal tão importante quanto o Superior Tribunal de Justiça.”
Essa visão humana e profundamente conhecedora da advocacia por parte da ministra é essencial para retomar o espaço e a voz de uma classe que há anos sofre com ataques por parte de diversos setores da sociedade, que não conseguem compreender a função essencial do advogado para a escorreita administração da justiça.
Nesse sentido, revela-se de suma importância o Projeto de Lei n.º 5.284/2020, transformado na Lei n.º 14.365/2022 em cuja justificação constou que a necessidade de reforçar as prerrogativas da classe fora “com o escopo de proteger a sociedade civil de atos de arbítrio estatal”.
E de fato, é a figura do advogado que reúne, a um só tempo, tanto a proteção da sociedade civil, quanto o combate ao arbítrio estatal. É ele quem, cumprindo com os mandamentos da advocacia, representa os interesses do cidadão que lhe constituiu e enfrenta o Poder Público, sendo leal a todos os participantes da relação processual: (5) SÊ LEAL. – Leal para com teu cliente, a quem não deves abandonar até que compreendas que é indigno de ti. Leal para com o adversário, ainda quando ele seja desleal contigo. Leal para com o juiz, que ignora os fatos e deve confiar no que tu lhe dizes;”.
Os julgadores devem estar sensíveis aos fatos trazidos pelas partes, cuja importância pode ser exemplificada no julgamento do Habeas corpus n.º 834.558/GO, pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no dia 12/12/2023, tendo prevalecido a divergência da ministra Daniela Teixeira, acompanhada em sua conclusão pelos ministros Reynaldo Soares da Fonseca e Ribeiro Dantas.
Foram justamente os fatos: furto de produtos de higiene, de irrelevante valor, com a restituição do bem, que convenceram os ministros a evoluir na jurisprudência e determinar o trancamento da ação penal pelo princípio da insignificância, afastando o óbice da contumácia na prática delituosa.
O Poder Judiciário é um organismo vivo cujo bom funcionamento depende da saúde e integridade de cada uma de suas partes e funções.
Reconhecer a fé pública aos advogados, na qualidade de porta-vozes dos jurisdicionados, reduz a insuspeição não só do Juízo com aquele que postula pela parte, mas da própria parte com o julgador, contribuindo para o bom funcionamento e fortalecimento do Poder Judiciário como um todo.
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