Como Shinzo Abe transformou a visão do Ocidente sobre Ásia e China
Ex-premiê japonês reconheceu ameaça da ascensão da China na região e fortaleceu laços militares com diversos parceiros
Para muitos na Ásia, Shinzo Abe foi precavido ao reconhecer o desafio que uma China em ascensão representava ao sistema de alianças políticas e militares liderado pelos Estados Unidos.
O ex-primeiro-ministro japonês – assassinado a tiros em 8 de julho – provavelmente fez mais do que qualquer um de seus contemporâneos ocidentais para enfrentar esse desafio.
Abe, que cumpriu dois mandatos separados e foi o primeiro-ministro mais longevo do Japão, será lembrado por muitos como o líder que finalmente tirou o país das sombras da Segunda Guerra Mundial.
Ele previu que o rápido crescimento do Exército Popular de Libertação da China – alimentado por uma das economias de crescimento mais rápido do mundo – perturbaria o equilíbrio de poder regional e argumentou que o Japão teria, como resultado, que repensar sua constituição pós-guerra. pacifista e imposta pelos EUA.
Em 2014, o governo de Abe reinterpretou essa constituição para permitir que os militares japoneses lutassem teoricamente no exterior. E deu as ferramentas para isso, comprando caças furtivos e construindo os primeiros porta-aviões do Japão desde a Segunda Guerra Mundial para acomodá-los.
Mas talvez sua maior contribuição para a defesa de seu país – e para muitos, a segurança de toda a região da Ásia – não esteja no equipamento militar, mas na linguagem; em sua cunhagem da frase simples: “um Indo-Pacífico livre e aberto”.
Mudança de paradigma
Com essas poucas palavras, Abe transformou a maneira como muitos líderes de política externa falam – e pensam – sobre a Ásia. Hoje, para aborrecimento de líderes chineses, essa frase está em toda parte. É usada como um mantra pelos militares dos EUA e é o vocabulário de escolha para qualquer aspirante a diplomata ocidental.
Portanto, pode ser difícil lembrar que, antes de Abe, poucas pessoas falavam do “Indo-Pacífico”. Antes de 2007, a preferência em Washington era conceituar a Ásia como aquela grande extensão do globo que vai da Austrália à China e aos Estados Unidos – e se referir a ela como “Ásia-Pacífico”.
Esse conceito tinha a China no centro – um anátema para Abe que, como muitos japoneses, temia que a crescente influência de Pequim significasse que seu país poderia ser intimidado por um vizinho muito maior.
O objetivo de Abe era encorajar o mundo a ver a Ásia através de uma lente muito mais ampla – a do “Indo-Pacífico”, um conceito que abrange os oceanos Índico e Pacífico que ele promoveu pela primeira vez em um discurso de 2007 ao Parlamento indiano intitulado ” Confluência dos Dois Mares.”
Esse repensar das fronteiras da Ásia fez duas coisas. Em primeiro lugar, deslocou o centro geográfico para o Sudeste Asiático e o Mar do Sul da China – convenientemente se concentrando em uma área do mundo onde Pequim tem disputas territoriais com uma série de nações.
Em segundo lugar, e talvez mais importante, trouxe à tona o único país do mundo que poderia atuar como um contrapeso à China apenas por seu tamanho: a Índia.
Trazendo a Índia para o jogo
Abe reconheceu “a importância da Índia como um equilibrador democrático para a futura hegemonia chinesa” e “começou a atrair sistematicamente os líderes indianos”, escreveu John Hemmings, do Centro Leste-Oeste em Washington, em uma avaliação de Abe em 2020 que coincidiu com o fim do seu segundo mandato como primeiro-ministro.
“Incluir a Índia no futuro da Ásia não foi apenas uma boa geopolítica, foi uma boa geoeconomia, pois a população e o sistema democrático da Índia equilibravam a população igualmente grande e o sistema autoritário da China”.
Abe tornou-se uma força motriz por trás do Diálogo de Segurança Quadrilateral, ou Quad, que trouxe a Índia para uma parceria com o Japão, os EUA e a Austrália, lançada no mesmo ano de seu discurso “Confluência dos Dois Mares”.
A parceria tem suas raízes nos esforços de socorro para o tsunami de 2004 no Oceano Índico, mas ganhou um “componente ideológico” em um discurso de campanha de 2006 de Abe, de acordo com o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.
Em seguida, renasceu em 2007 como um fórum estratégico com cúpulas semi-regulares, trocas de informações e – crucialmente – exercícios militares conjuntos que enfrentaram resistência da China.
Meses depois, Abe esboçou sua visão de uma “Ásia mais ampla… uma imensa rede” abrangendo países que compartilham “valores fundamentais”, como liberdade e democracia, e interesses estratégicos comuns.
Essa descrição parece deixar pouco espaço para a China, que se sente ameaçada pelo Quad desde então, e cujo ministro das Relações Exteriores Wang Yi acusou abertamente os EUA de tentar cercar a China com uma “Otan do Indo-Pacífico”.
Um Indo-Pacífico livre e aberto
Quando por um tempo parecia que a hostilidade da China poderia destruir o Quad, que se desfez em 2008 após ameaças de retaliação econômica por parte de Pequim, Abe entrou em cena mais uma vez.
De acordo com o Ministério das Relações Exteriores do Japão, Abe esboçou pela primeira vez sua visão de um “Indo-Pacífico livre e aberto” em um discurso no Quênia em 2016.
Sua visão consistia em três pilares: a promoção e estabelecimento do Estado de Direito, liberdade de navegação e livre comércio; busca da prosperidade econômica; e compromisso com a paz e a estabilidade.
O termo atuou “como um contraste para a visão cada vez mais centrada na China do futuro da Ásia, promovendo abertura e valores”, disse Hemmings.
No ano seguinte ao discurso de Abe no Quênia, o Quad renasceu – e o governo Trump revelou seu próprio conceito de “Indo-Pacífico livre e aberto”.
Na época da morte de Abe, o Quad havia se expandido significativamente. Nos últimos dois anos, os quatro países realizaram dois exercícios navais conjuntos.
Legado de Abe
Escrevendo após a morte de Abe, Robert Ward, presidente do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos no Japão, observou como Abe reestruturou a política externa de seu país, “impulsionado por seu rápido reconhecimento da ameaça da rápida ascensão da China”.
Como tal, escreveu Ward, era “difícil exagerar a importância transformadora de seu legado, tanto dentro quanto fora do Japão”. A amplitude fica clara nas homenagens que se seguiram à sua morte.
Entre os estadistas que prestaram homenagem estava o primeiro-ministro indiano Narendra Modi – que se referiu a Abe como um “querido amigo” desde que o conheceu em 2007 e declarou um dia de luto nacional na Índia pelo ex-líder japonês.
Também foram reveladoras as homenagens dos EUA – o maior rival da China e o maior aliado militar do Japão.
Sob Abe, os laços entre os EUA e o Japão atingiram um “novo nível”, disse Tobias Harris, membro do Centro para o Progresso Americano, e isso se refletiu na ordem do presidente Joe Biden de que as bandeiras dos EUA fossem hasteadas a meio mastro em todos os prédios públicos do país e em todas as instalações federais ao redor do mundo.
Também se refletiu na homenagem oficial da Casa Branca. Abe era “um amigo fiel dos Estados Unidos”, disse a Casa Branca. “Trabalhou com presidentes americanos de ambos os partidos para aprofundar a aliança entre nossas nações e promover uma visão comum para um Indo-Pacífico livre e aberto.”