Europa: do adeus de Angela Merkel em 2021 à eleição na França em 2022
Alemanha tem novo chanceler depois de 16 anos; enquanto saída dos britânicos da União Europeia se arrasta por mais um ano, França se aproxima de eleição
A Europa começará 2022 sem ter Angela Merkel como chanceler da Alemanha e líder protagonista da União Europeia (UE). Símbolo do comando no bloco continental por 16 anos, ela deu lugar em 2021 a seu vice-chanceler, Olaf Scholz, e concluiu uma era marcada por sucessivas crises que ameaçaram a existência e, ao mesmo tempo, atestaram a resiliência da comunidade.
Se a saída de Merkel é obviamente carregada de simbolismo, isso não significa, na prática, que Alemanha e União Europeia sofrerão mudanças drásticas com o fim da era da chanceler mais longeva pós-queda do Muro de Berlim.
Mas há muitas pontas para serem amarradas, a médio e longo prazo. No caso da União Europeia, um exemplo evidente é a arrastada saída do Reino Unido, que continua gerando conflitos e tensionando as relações entre os britânicos e seus ex-parceiros de bloco.
Também há incerteza sobre o cenário do continente caso Emmanuel Macron, grande parceiro de Merkel no comando da UE nos últimos cinco anos, seja derrotado nas eleições presidenciais francesas, marcadas para abril de 2022.
A CNN ouviu os especialistas Ana Paula Tostes, membro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais e professora de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Bruno Theodoro, pesquisador e membro da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo; e Laerte Apolinário Júnior, professor de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), para lembrar as dificuldades que os europeus enfrentaram em 2021 e que ainda são motivo de apreensão para o próximo ano.
Eles também analisaram a ascensão de Scholz ao poder na Alemanha e o fragmentado cenário eleitoral na França, onde Macron, principal nome nas pesquisas, enfrentará concorrentes de diferentes perfis na busca pela reeleição.
Um Brexit que não acaba
Lá se vão quase seis anos desde que os britânicos decidiram, em um referendo de resultado apertado, que o Reino Unido deixaria a União Europeia. Era junho de 2016, auge da crise de refugiados, quando o clima anti-imigração tomou parte do país e de parte do mundo ocidental.
Mas a promessa de que o Brexit devolveria empregos para os britânicos ainda não se concretizou. Além de todo o impacto econômico causado pela pandemia, o Reino Unido ainda não conseguiu concluir as negociações duras e arrastadas com a União Europeia, principalmente em temas específicos e sensíveis.
Em 2021, o Reino Unido tentou renegociar o Protocolo da Irlanda do Norte, que permite uma fronteira terrestre sem restrições desse país com a República da Irlanda, membro da UE. A ausência de alfândegas é essencial para respeitar o acordo de paz, fechado em 1998, que cessou a violência e os movimentos separatistas norte-irlandeses.
Mas a eventual criação de uma fronteira marítima entre Irlanda do Norte e Grã-Bretanha, que seria a alternativa à fronteira terrestre, não agrada economicamente ao Reino Unido. Apesar da insatisfação britânica, a União Europeia se mostra irredutível sobre a validade do Protocolo, acertado no ano passado.
“Os britânicos escolheram o Brexit, mas não quiseram que o acordo de divórcio tivesse perda de privilégios”, analisa Ana Paula Tostes. “Questões como a fronteira da Irlanda do Norte e outros conflitos – como a entrada de imigrantes, por exemplo –, já eram problemas anunciados, porque não foram devidamente discutidos. Agora, existem essas tentativas de negociação.”
A professora vê esses conflitos como normais nesse momento ainda transitório. Com o tempo, diz, as negociações encontrarão um equilíbrio. “Ainda assim, há perdas irreparáveis para o Reino Unido, porque perdeu instituições e empresas que faziam parte da União Europeia e saíram do país”, ressalta.
Outros problemas internos que atrapalham os britânicos também estão ligados, de alguma forma, ao Brexit. Com a crise decorrente da pandemia, esses aspectos ficaram ainda mais graves neste ano.
O Reino Unido enfrenta uma crise de abastecimento, falta de caminhoneiros, problemas com mão de obra… São turbulências econômicas de agora, mas que tendem a se normalizar com o passar do tempo, quando as cadeias produtivas britânicas estiverem rearranjadas
Laerte Apolinário, professor da PUC-SP
Alemanha sem Angela Merkel
A crise do Brexit soma-se a uma sequência de momentos difíceis que o bloco europeu enfrentou nos últimos 15 anos: a crise do euro, o endividamento da Grécia, a chegada em massa dos refugiados e, obviamente, a pandemia desde 2020.
Nos últimos meses de 2021, milhares de refugiados se reuniram nas fronteiras de Belarus para tentar acessar três países-membros da UE: Lituânia, Letônia e Polônia.
A comunidade, os Estados Unidos, Canadá e Reino Unido acusaram o líder Alexander Lukashenko de fabricar a crise e atrair os imigrantes com o intuito de pressionar a União Europeia a levantar sanções impostas contra empresas e autoridades de Belarus.
Segundo Ana Paula Tostes, a UE demonstrou algum poder de adaptação e se consolidou como comunidade, mesmo com todas as dificuldades.
Há uma população de jovens que foram socializados já como cidadãos europeus e não sabem o que é viver trancado dentro das fronteiras de seus países
Ana Paula Tostes, professora da Uerj
Essa marca da União Europeia, principalmente com a sobrevivência durante as crises, também faz parte do legado da própria Angela Merkel no comando do bloco – e que ajudou a chanceler a se tornar mais popular em seu próprio país.
“Os alemães encontraram estabilidade em um caminho menos nacionalista e mais europeísta. A Merkel foi fundamental na consolidação desse projeto, trazendo a Alemanha para o centro da União Europeia e se firmando nessa liderança”, afirma a professora.
Com o novo chanceler, a aposta é de continuísmo, até pela presença de Olaf Scholz no governo de Merkel. “Ele não é um outsider. Conhece bem a União Europeia e participou das negociações envolvendo o bloco. E ele tem um discurso pró-Europa, buscando defender a soberania e os interesses comuns do continente”, acrescenta Laerte Apolinário.
Coalizão improvável no novo governo alemão
Internamente, também não há expectativas de grandes mudanças com a ascensão do novo líder. Mas há uma grande diferença entre as coalizões políticas fechadas por Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata (PSD, de centro-esquerda), e Merkel, da União Democrática Cristã (CDU, de centro-direita).
A CDU, assim como Merkel, ficará fora do poder pela primeira vez em 16 anos – Scholz governará em uma aliança com os Verdes, mais à esquerda em relação ao partido do chanceler, e o Partido Democrático Livre, de tendência liberal e de centro-direita.
“É uma aliança complexa”, afirma o pesquisador Bruno Theodoro. “Reuniram a centro-esquerda, a esquerda ambientalista e os liberais. É uma coalizão que abrange diversas ideologias e que torna improvável uma mudança significativa no comando da Alemanha.”
Para os especialistas, a diferença de perfil em relação à gestão anterior está ligada a bandeiras típicas dos Verdes, que deverão pressionar pela aceleração no uso de energias renováveis e cobrarão uma postura mais dura em relação a violações de direitos humanos.
O partido, inclusive, comandará o Ministério das Relações Exteriores do novo governo e pode endurecer o diálogo com China e Rússia pelas posições intervencionistas desses dois países.
Do lado dos liberais, a tendência é empurrar a pauta econômica para a direita, contra o aumento de impostos e a favor da rigidez das contas públicas, por exemplo.
“Essa coalizão entre partidos de pautas diferentes pode gerar algum tipo de tensão para o governo, mas também indica que as posições sejam levadas a um lugar de moderação”, avalia Laerte Apolinário.
Macron e a tentativa de reeleição na França
A chance de mudança de protagonismo no cenário europeu para 2022 está na França. Emmanuel Macron – cujo perfil de outsider e uma plataforma centrista lhe garantiram a vitória em 2017 contra Marine Le Pen, de extrema-direita – deverá enfrentar um cenário fragmentado em sua tentativa de reeleição.
O primeiro turno está marcado para 10 de abril; se nenhum candidato conseguir mais de 50% dos votos, haverá segundo turno, no dia 24.
Le Pen, novamente candidata, moderou um pouco o tom, mas mantém o discurso anti-imigração que marcou sua trajetória política.
Desta vez, ela encontra oponentes mais e menos radicais no campo da direita: de um lado, Valérie Pércresse, do Partido Republicano, o mesmo do ex-presidente Nicolas Sarkozy; do outro, o jornalista Eric Zemmour, que é apontado como uma “versão francesa” de Donald Trump por sua retórica agressiva contra os opositores e os inflamados discursos contrários aos imigrantes.
No momento em que a Le Pen começou moderar seu discurso, ela descontentou os mais radicais e abriu espaço para figuras como Zemmour, com um discurso racista e xenofóbico. Ele se vale de muitas táticas de Trump, com uma campanha agressiva, até violenta, que acaba lhe trazendo visibilidade
Bruno Theodoro, pesquisador da Rede de Pesquisa em Política Externa e Regionalismo
Nas pesquisas eleitorais deste fim de 2021, os três candidatos da direita aparecem atrás de Macron, que agrega pouco mais de 20% das intenções de voto.
Pércresse e Le Pen se alternam na segunda posição, com Zemmour em terceiro. Os três nomes da esquerda — Jean-Luc Mélenchon, Yannick Jadot e a prefeita de Paris, Anne Hidalgo — surgem na sequência, com menos de 10% dos votos e, teoricamente, menos chances de chegar ao segundo turno.
“A esquerda está muito fragmentada, e isso é um trunfo para o Macron, porque ele se coloca como uma figura mais moderada, tolerada pelos extremos”, analisa Laerte Apolinário.
“Apesar disso, ele é uma figura mais liberal, com políticas econômicas mais pró-mercado. Ao mesmo tempo, se apresenta mais progressista nos campos sociais, em especial na questão migratória.”
Segundo os analistas, quem pode aparecer com força é Valérie Pércresse, que teria capacidade de agregar apoio de diferentes campos e vencer a eleição.
“Se a Pércresse demonstrar boa capacidade de liderança, ela tem chances. É uma opção mais à direita do Macron e pode roubar parte dos votos da Le Pen”, afirma Ana Paula Tostes, lembrando que as pesquisas mostram a candidata republicana com maiores chances de bater o atual presidente no segundo turno.
Mas o cenário ainda é incerto e pode reservar surpresas. Apesar do perfil centrista e do possível apoio da esquerda no segundo turno, Macron também tem suas dificuldades no eleitorado.
Em 2021, o presidente francês não passou incólume a protestos; entre julho e agosto, por exemplo, mais de 100 mil pessoas foram às ruas para reclamar contra a exigência da vacina e de um teste negativo para Covid-19 para ingresso em bares, cinemas, restaurantes e trens que viajam entre cidades.
Além das turbulências motivadas pela pandemia, Macron também encontra obstáculos econômicos, que afetam os franceses de maneira geral.
“O que joga contra ele é a insatisfação doméstica contra a inflação, desemprego, custo de vida e outros problemas que os franceses estão vivendo. Esses temas, aliados aos problemas da pandemia, vão dominar as eleições”, afirma Laerte Apolinário.