Prime Time

seg - sex

Apresentação

Ao vivo

A seguir

    O que esta foto divertida revela sobre a infame “Cidade Murada” de Hong Kong

    Fotos tiradas na década de 1980 e 90 ilustram características da comunidade que vivia na vila de 350 edifícios, de até 14 andares, precariamente amontoados e sem responsabilidade legal

    Rebecca Cairnsda CNN

    Era o verão de 1989. A umidade de Hong Kong – já opressiva – intensificava-se nas vielas escuras e labirínticas de um enclave rebelde conhecido como Cidade Murada de Kowloon. Na época, o lugar mais densamente povoado da Terra, seus prédios estavam tão amontoados que, do chão, mal se via um pedaço de céu.

    Procurando um momento de descanso do calor e do caos abaixo, o fotógrafo Greg Girard se viu no telhado de um dos muitos arranha-céus construídos ilegalmente no enclave, entre um emaranhado de antenas de televisão.

    Ele não estava sozinho. Na Cidade Murada, a delimitação de espaços públicos e privados “nem sempre foi clara”, lembrou Girard em um videochamada, acrescentando que o telhado era uma fuga para muitos dos seus residentes relaxarem, lavarem roupa ou verem os aviões pousarem no aeroporto internacional Kai Tak. “Quando você chega ao telhado, tudo muda. A vista se abre e está mais fresco, há uma brisa”.

    Passando pelos estreitos espaços entre os edifícios ligados com tábuas de madeira, as crianças saltavam e brincavam entre as teias dos varais e das antenas. “Ninguém parecia pensar que era um lugar perigoso, embora não houvesse grades de proteção ou algo parecido”, disse Girard.

    Naquele dia específico de verão, algumas crianças viram a câmera de Girard e se aproximaram dele. Quando ele virou as lentes para elas, elas começaram a atuar e fazer caretas. Ele tirou várias fotos, descrevendo a última, que acabou optando por publicar, como o momento em que eles “estabeleceram esse confronto comigo”.

    Na foto, uma criança, descalça e com um vestido azul, olha para a câmera. Seu rosto está relaxado e suas mãos estão enroladas em um mastro de antena, como se ela estivesse prestes a girar. No fundo, sua amiga assume uma postura desafiadora, com as mãos nos quadris, enquanto outra está curvada em um agachamento brincalhão.

    “Pensei que (a imagem) captasse a indiferença das crianças em relação ao perigo potencial do telhado, ao mesmo tempo que eram donas do seu território e me confrontavam enquanto brincavam”, disse Girard, acrescentando: “Foi um dia normal (lá)”.

    A brincadeira das crianças, justaposta às antenas irregulares e ao concreto ao redor, parece resumir o espírito da Cidade Murada de Kowloon, disse o fotógrafo.

    “Não era um playground ideal, mas isso nunca pareceu incomodar ninguém – o que era, claro, o espírito da Cidade Murada: aproveitar ao máximo e até mesmo aproveitar a vida em uma situação que a maioria das outras pessoas ficaria horrorizada”.

    “Cidade Murada, Estrada Tung Tau Tsuen” (1987) por Greg Girard. Placas em preto e branco anunciam consultórios de dentistas e médicos operando no interior / Greg Girard/Blue Lotus Gallery

    Uma “vila estranha e vertical”

    Girard visitou a Cidade Murada de Kowloon pela primeira vez em 1986, durante uma filmagem no aeroporto próximo.

    Naquela época, cerca de 350 edifícios, de até 14 andares, estavam precariamente amontoados em um espaço de 0,03 quilômetros quadrados. A maioria das torres foi construída sem fundações adequadas ou sem consideração pelos códigos de segurança.

    “Esta estranha aldeia vertical não deveria existir”, disse Girard, explicando que a Cidade Murada de Kowloon foi o produto de uma peculiaridade histórica e política. Embora o enclave estivesse situado no centro de Hong Kong, então uma colônia britânica, os funcionários imperiais recusaram-se a assumir responsabilidade legal por ele. Como tal, a Cidade Murada permaneceu tecnicamente sujeita ao domínio chinês, embora este nunca tenha sido aplicado.

    “Isso permitiu que se tornasse algo que você não poderia ter sonhado”, acrescentou Girard.

    Existindo na ambiguidade durante quase um século, a cidade tinha uma reputação de negócios ilícitos e era famosa pelas suas tríades, os antros de drogas, bordéis e odontologia não licenciada.

    Mas quando o fotógrafo canadense fez a sua primeira visita à cidade “próspera”, em 1986, o controle da tríade tinha diminuído e estas caracterizações estavam, disse ele, “muito desatualizadas”.

    “Pode ter sido verdade em algum momento”, acrescentou. Mas a sua memória duradoura do lugar era a comunidade que vivia ali. “Você rapidamente percebe que é apenas um lugar onde as pessoas estão tentando sobreviver, como qualquer outra parte da classe trabalhadora de Hong Kong”.

    “Cidade Murada de Kowloon, vista de um beco” (1990) por Greg Girard / Greg Girard/Blue Lotus Gallery

    Girard estava determinado a desmistificar a chamada “Cidade das Trevas”, especialmente depois de o governo colonial ter anunciado planos em 1987 para a demoli-la. Ele passou quatro anos documentando a Cidade Murada com o colega fotógrafo Ian Lambot, e a dupla acabou publicando um livro com as imagens em 1999.

    No início, Girard decidiu fotografar a série em cores e usou equipamento de iluminação portátil – semelhante ao que ele usava para fotografar celebridades e CEOs para retratos brilhantes de revistas.

    “As únicas fotos que você via da Cidade Murada naquela época tendiam a ser em preto e branco, e faziam o lugar parecer o pior possível, de acordo com a reputação da Cidade Murada como uma favela perigosa e esquálida”, disse Girard. Quando se tratava de capturar o dia a dia das pessoas e imagens de moradores, lojistas e proprietários de fábricas, o fotógrafo queria usar “uma abordagem mais imparcial”, acrescentou.

    Girard documentou, entre muitas outras coisas, o caos confuso das fábricas de macarrão e bolinhos de peixe, uma criança inspecionando seu joelho arranhado no balcão da mercearia de sua família e um barbeiro enrolando o cabelo de um cliente. Embora as reações iniciais à sua presença fossem muitas vezes frias (“havia uma palpável hostilidade para com os estrangeiros”, lembrou), os residentes acabaram por permitir que ele entrasse nos seus apartamentos apertados.

    Seu princípio orientador, disse Girard, era “tentar mostrar o que realmente era, já que boatos e mitos eram as únicas coisas que se sabiam sobre o lugar”.

    Distopias imaginadas

    Quando a Cidade Murada foi arrasada, de 1993 a 1994, isso deveria ser o fim. Mas nas décadas seguintes, o enclave despertou indiscutivelmente mais interesse do que nunca enquanto existia. Em 2014, Girard e Lambot publicaram uma edição “revisitada” de seu livro que explorou o legado da cidade na cultura popular – inclusive como inspiração para distopias ficcionais em videogames e filmes, como “Call of Duty: Black Ops” e “Batman – o início”.

    “A Cidade Murada foi o ponto de partida para uma cidade imaginária onde as regras normais não se aplicam”, disse Girard.

    Veja também: Fotos selecionadas para o 16º Prêmio Anual de Fotografia por iPhone

    Também tem havido um interesse renovado nos círculos arquitetônicos: a construção orgânica e não regulamentada que fez da Cidade Murada de Kowloon uma “distopia” para se viver está agora sendo examinada como uma fonte de inovação devido ao uso engenhoso de espaço limitado e materiais baratos ou de segunda mão, disse Girard.

    “As limitações daquele lugar certamente estimularam muitas respostas criativas, em termos de construção, para (a questão de) o que fazer em um lugar que ninguém se preocupa ou presta atenção, exceto os moradores”, acrescentou Girard.

    Desde então, o local da Cidade Murada foi transformado em um parque público, inaugurado em 1995. Silencioso e sem aglomeração, é em muitos aspectos o oposto do que substituiu, proporcionando um alívio muito necessário do clamor de uma cidade desesperadamente carente de espaço público.

    Pavilhões de xadrez ao ar livre e lagos à sombra de figueiras-da-índia cercam o antigo edifício Yamen, uma relíquia da cidade-guarnição chinesa do século 19 que existiu no local e a única estrutura que sobreviveu à demolição.

    Dentro do prédio, a famosa foto de Girard no telhado é ampliada para preencher uma parede inteira, acompanhada por uma faixa de áudio de crianças rindo e o barulho dos motores dos aviões. A memória de uma comunidade vibrante – imortalizada por fotógrafos como Girard – perdura.

    O interesse contínuo pela Cidade Murada deve-se, sugere Girard, ao espírito que ela encapsula: a aptidão para a sobrevivência mesmo nas circunstâncias mais difíceis. “Ela ainda continua a fascinar”, disse ele. “E isso é maravilhoso”.

    Tópicos