Como o preconceito racial afeta a saúde mental da população negra
Dados do Ministério da Saúde mostram que o índice de suicídio é 45% maior entre jovens negros, em relação aos brancos
O índice de suicídio entre adolescentes e jovens negros no Brasil é 45% maior do que entre brancos. Os dados são do Ministério da Saúde e mostram ainda que o risco aumentou 12% entre a população negra, nos últimos anos e permaneceu estável entre brancos. Nesse recorte, a faixa etária de 10 a 29 anos é a que mais sofre, principalmente os do sexo masculino, que têm chance 50% maior de tirar a vida do que entre brancos da mesma idade. Os números são alarmantes e chamam a atenção, mas qual seria a principal causa desse alto índice de suicídio entre os negros? Porque eles são os mais vulneráveis?
De acordo com o advogado e diretor do Instituto Luiz Gama, Ong que luta pelos direitos humanos e das minorias, é preciso analisar as causas, efeitos e soluções desse que é um problema real no Brasil.
Santos destaca que a princípio precisamos pensar nas causas que levam o suicídio, que são a depressão, transtornos, estresse, medo, dependência química e inúmeras outras doenças mentais que acometem o ser humano. “Dados mostram que entre as pessoas que cometeram suicídio, dentre 50 a 70% nunca passaram por um tratamento com profissionais da saúde como psicólogos e psiquiatras. Isso se deve ao racismo estrutural e os impactos sociais e econômicos desse sistema”.
Ele explica ainda que além da falta de recursos para procurar um tratamento adequado, a população mais pobre que concentra em sua maioria negros também passa pela ridicularização, já que muitos recebem rótulos de “homem forte” e “mulher guerreira”, que precisam aguentar tudo e isso abre um leque ainda para a manifestação de doenças psicossomáticas, desencadeando no câncer e problemas cardíacos, entre outras patologias.
Outro elemento de ordem cultural é o embasamento religioso, muito comum também entre a população com menos recursos. “Existe aquela máxima de achar que todo o problema tem sua causa em ordens espirituais. As pessoas tentam resolver com rituais religiosos e acabam não procurando ajuda profissional e um tratamento multidisciplinar”.
A população negra tem ainda o agravante de que a falta de acesso a tratamento médico adequado já na primeira infância. “Por conta da questão econômica, as crianças de 0 a 3 anos, não conseguem ser atendidas por um pediatra periodicamente e isso pode criar lacunas na parte cognitiva e no desenvolvimento em geral. Além disso, muitas não têm acesso a uma alimentação adequada com todos os nutrientes e suplementos necessários”.
Toda essa lacuna por falta de recursos financeiros perdura ao longo da adolescência, juventude e vida adula, de maneiras diferentes. Segundo o especialista, as escolas normalmente não possuem profissionais qualificados para lidar com a diversidade. As questões raciais e de gênero não são aprofundadas nas escolas, principalmente as instituições privadas.
Nesse sentido essa criança e mais tarde o jovem, vive em uma cultura negacionista, extremamente autoritária e violenta na pressão ideológica, que dita o que é certo e o errado
Julio Santos, diretor do Instituto Luiz Gama
Dentro desse contexto, as pessoas negras se sentem cada vez mais inferiorizadas e incapazes de ocupar determinados espaços que socialmente são negados aos seus iguais.
Soluções
Como solução para esse problema, Julio Santos explica que é preciso que se criem núcleos de convivência na família, no trabalho e entre os amigos para suprir essa necessidade de pertencimento da população negra. “O sentimento que passa entre as pessoas que tentam ou cometem suicídio é que a vida não tem valor e que por isso elas não têm mais motivação para viver”.
Santos também ressalta a importância do emprego, oportunidades de lazer que podem ser criadas por esses núcleos. “Os negros normalmente se envolvem em relações fragilizadas, principalmente nas afetivas, onde sempre são opções secundárias. Isso acontece principalmente com mulheres negras que quase nunca são as preferidas nas relações e ainda com homossexuais negros que são estereotipados como “pares perfeitos” para o sexo, mas não para serem assumidos nos relacionamentos”.
Existe uma ausência de espelhos para a população negra e problemas estruturais de diferentes ordens. Por isso é importante que haja uma intervenção, a criação de políticas públicas que estudam as vulnerabilidades com recortes sociais.
O setembro amarelo precisa ser visto a partir de um recorte racial, identificando quais são as causas que mais levam ao suicídio desse indivíduo. O cidadão negro precisa ser atendido de acordo com as suas necessidades, que naturalmente são totalmente diferentes das de pessoas de outras etnias
Julio Santos, diretor do Instituto Luiz Gama
Empatia
Pensando justamente em oferecer um tratamento específico baseado na questão racial para o tratamento de doenças emocionais, foi criada a AfroSaúde, que é uma health tech de impacto social, focada em desenvolver soluções tecnológicas para a comunidade negra. Por meio de uma plataforma, a instituição conecta pacientes a profissionais negros de saúde e bem estar de todo Brasil.
O CEO e fundador da AfroSaúde, Arthur Lima, enfatiza que o racismo estrutural é o principal fator desse alto índice de suicídio entre os negros e destaca que situações comuns vividas por esta população, como ser a todo momento confundido com criminoso ou seguido por seguranças em lojas e mercados causam um sofrimento psíquico que já foi comprovado por especialistas. “Essa tensão de ter que estar atento a todo tempo, sempre em estado de alerta faz com que a pessoa tenha dificuldade para se concentrar, gerando uma ansiedade e fobia constantes”, explica Lima.
Entre as mulheres problemas parecidos e outras ordens também causam transtornos. “Nas questões afetivas elas são preteridas e no mercado de trabalho é sempre presente a síndrome do impostor. Mulheres negras em ascensão sentem a falta de pertencimento porque não conseguem se ver naqueles espaços”.
Nesse sentido, a AfroSaúde tem tido excelentes resultados já que os profissionais negros podem entender melhor a questão de raça porque passam pelas mesmas situações. “A comunicação é facilitada e esses profissionais entendem com clareza ao problemas vividos pelos negros. Existe uma empatia como os contextos que eles já estão familiarizados e isso faz toda diferença no atendimento”.
Estafa emocional
A arquiteta e gerente de Facilities, Talita Alves Gardin Zylberman, foi diagnosticada com síndrome de Burnout em 2021, durante a pandemia. No auge do aumento de casos das doenças, muitas pessoas da empresa foram demitidas e ela acabou acumulando muito trabalho. Ela gerenciava alguns prédios e mesmo com o avanço da Covid-19, precisava estar presencialmente na empresa.
“Foi um período muito estressante. Eu fui acometida pela doença e junto com tudo isso, fui transferida para um outro prédio, onde eu tinha uma gerente que era extremamente grosseira, autoritária e invasiva. Isso começou a afetar o modo como eu trabalhava. Sofri assédio moral e cheguei a fazer a denúncia na empresa, mas isso só me expôs ainda mais”, contou.
Talita contou que em determinado momento começou a ter medo de pisar no prédio. “Só de ver no relógio que estava na hora de acordar para trabalhar e começar a receber mensagens das pessoas da empresa, eu já entrava em pânico. Em um certo dia fui trabalhar e senti uma dor muito forte no peito, uma sensação de que eu estava infartando. Ligaram pro meu marido e eu fui para o hospital”, lembrou a arquiteta.
No hospital, Talita fez todos os exames, mas nenhuma doença foi detectada. “A médica me fez várias perguntas e chegou ao diagnóstico de que eu estava com Síndrome de Burnout. Isso me afetou de uma tal forma que até hoje eu tomo remédio e não posso pensar em parar. No início deste ano eu achei que estava bem e retirei a medicação, mas tive uma crise muito forte”.
A arquiteta lembra que um dos sintomas do Burnout era um peso muito grande no corpo, além de crises de choro e pânico.
Era como se uma pessoa muito pesada estivesse em cima do meu peito e isso me impedia de respirar.
Talita Alves Gardin Zylberman, arquiteta
Em relação ao recorte social, Talita como uma mulher negra, reconhece que por conta do racismo estrutural que é muito latente no Brasil, ela se sente o tempo todo incapaz. “É a famosa síndrome de impostora. Um sentimento de não pertencimento. Na empresa onde eu trabalhava, entre 300 pessoas, apenas 13 eram negras, então eu não me via representada nos espaços.”
Talita conta que ela é filha de pai branco e mãe negra e alguns irmãos dela nasceram bem claros. “É nítida a diferença em relação ao emprego. Tenho uma irmã que é loira e ela, com menos qualificação profissional do que eu, consegue facilmente ser aceita em cargos de chefia. Como mulher negra, é estafante sempre ter que trabalhar duas ou três vezes mais para ser notado na empresa”.
Atualmente Talita está desempregada, mas bem emocionalmente. Apesar de necessitar do dinheiro, ela reconhece que o mais importante é preservar a saúde mental. “Ainda estou em tratamento. Faço alguns freelas, mas não deixo de fazer a terapia e continuar com os medicamentos. Ainda sinto medo e ansiedade quando penso em voltar para o meio corporativo”.