Excesso de sedativos em gestantes traz risco à mulher e à criança, dizem médicos
Vítima de estupro durante cesárea no Rio de Janeiro foi sedada até perder a consciência; procedimento é condenado por especialistas
Um ponto em comum relatado por algumas das pacientes que foram atendidas pelo anestesista preso por estupro na última segunda-feira (11) foi o de que elas teriam sido sedadas a ponto de ficarem inconscientes durante o trabalho de parto.
Em depoimentos prestados na Delegacia da Mulher (Deam), os profissionais de saúde que trabalharam com Giovanni Quintella Bezerra disseram que, de fato, o médico sedava totalmente as suas pacientes.
Tal procedimento é pouco comum em casos de cesárea e traz riscos para a mãe e para o próprio bebê.
Segundo Ana Cristina Pinho, diretora-geral do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA), na grande maioria dos casos de parto por cesariana, é feita uma anestesia que tem efeito da cintura para baixo da mulher.
Porém, a sedação após este procedimento ocorre apenas em casos específicos e de forma leve, e somente após a ligadura do cordão umbilical.
“A sedação só é autorizada após o nascimento do bebê e o corte do cordão umbilical. São dois indivíduos literalmente ligados. Quando eu administro um sedativo para a mãe, com o cordão umbilical presente, esse sedativo atravessa a placenta e atinge o bebê e o expõe ao risco de nascer com quadro de depressão respiratória. Ele passa a não respirar adequadamente e pode evoluir para um déficit de oxigênio que decorre em risco de sequelas permanentes”, explicou.
Já para a gestante, que tem um tempo maior de esvaziamento do estômago do que as não gestantes, há riscos de broncoaspiração, segundo especialistas.
Isso pode levar a quadros sérios, como infecções pulmonares e pneumonias e, em casos mais graves, pode resultar até na morte da paciente.
Em um dos depoimentos prestados à polícia, o técnico de enfermagem Davi de Freitas, que trabalhou com Giovanni, relatou que uma das justificativas dadas pelo anestesista para utilizar sedativos foi de que a paciente estava com náuseas e que era ´preciso “apagá-la”.
O técnico relatou justamente o temor pelo risco de broncoaspiração em caso de a paciente ter náusea.
Renato Sá, vice-presidente da Associação de Ginecologia e Obstetrícia do Estado de Rio de Janeiro (SGORJ), disse que usar sedativos durante a cesárea, apesar de não ser ilegal, não é algo corriqueiro e, assim como Ana Pinho, afirmou que as doses devem ser ministradas da forma mais leve possível.
“Existem situações incomuns que necessitam de sedação. Ainda assim, deve-se usar o mínimo possível. A sedação pode ser usada dentro de uma justificativa médica. Tudo isso depende de indicações médicas para você alterar o padrão da anestesia. Sedar não é proibido, mas não é a regra”, explicou.
Ainda de acordo com o médico, os casos que justificariam o uso de anestésicos são situações de emergência, como uma hemorragia durante a cesárea, ou, por exemplo, uma falha de bloqueio após a anestesia que paralisa da cintura para baixo, procedimento normalmente aplicado antes de uma cesárea.
Mesmo assim, não é recomendado que a paciente perca a consciência.
“O objetivo da assistência ao parto é de que a mãe participe, que seja a protagonista do nascimento, ainda que seja uma cesariana. O ideal é que ela esteja acordada ao longo de todo tempo e, assim, que o bebê nasça e ela esteja em condições de ficar em contato direto com a mãe, pele a pele”, destacou.
Segundo informações colhidas pela Delegacia da Mulher (Deam), o anestesista preso por estupro usou os medicamentos Propofol e Ketamina para sedar e deixar as pacientes inconsciente.
Apesar de não serem ilegais, a utilização destes sedativos não é comum nestes casos, como disse Ana Cristina Pinho.
“O Propofol pode ser usado tanto para sedação como para anestesia geral (que requer intubação e relaxamento muscular). Na sedação, o objetivo é que se mantenha a respiração espontânea. Em obstetrícia normalmente se utiliza medicamentos que se consiga mais o efeito de redução da ansiedade do que sedativo, para tirar a consciência”, explicou a diretora-geral do Inca.
Já a ketamina, continuou ela, “é um medicamento que quando usado em doses mais altas causa efeitos psicomiméticos.
Quando ele é usado para sedação leve, a dose é mínima. Isso chamou atenção da equipe. O uso inabitual de altas doses de sedativo. Não existe opção de sedação profunda”, completou.
Renato Sá foi nessa mesma linha e afirmou que a “ketamina é uma outra medicação muito pouco usual para uso obstetrício, e é um dos sedativos mais pesados”.
Instituições se posicionam sobre o caso
Instituições brasileiras de obstetrícia, anestesiologia e medicina se posicionaram sobre o caso de estrupo que ocorreu último domingo (10), no Hospital Maternidade da Mulher de São João de Meriti.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) declarou em nota que o Conselho Regional de Medicina do Estado (Cremerj) iniciou uma investigação e que ela está em andamento.
“Cabe ao Conselho Regional de Medicina (CRM) do Estado onde ocorreu o fato conduzir a apuração por meio da abertura de sindicância, cuja conclusão pode levar à abertura de um processo ético profissional”, apontou a CFM em nota de esclarecimento.
Um ofício foi encaminhado para o Cremerj na segunda-feira (11) para que o médico anestesista preso por estupro perca seu registro.
A Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA), em nota oficial, afirmou que tomará as devidas providências, como a exclusão do anestesista do departamento de sócios da sociedade, além de realizar a cobrança de ações efetivas por parte de instituições como o Cremerj.
“A nossa sociedade não ficará inerte diante de fatos tão obscenos e degradantes como os que foram praticados, agiremos de forma contundente e EXEMPLAR a fim de punir o médico que protagonizou esse abominável episódio”, destacou a SBA, que já foi suspenso de forma temporário dos quadros de sócio.
Já a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) disse que não apoia nenhuma forma de violência e desrespeito.
“Casos como os que, infelizmente, temos acompanhado nos veículos de comunicação, fogem de qualquer premissa da assistência médica e, portanto, entram na esfera criminal”, destacou em nota.
À CNN, a diretora-geral do Inca condenou e lamentou o crime cometido, e disse que é preciso passar uma mensagem de segurança às mulheres neste momento, e lamentou que um profissional que está lá justamente para passar segurança, tenha cometido tais crimes hediondos.
“É compreensível essa sensação de insegurança em relação aos riscos que se corre em uma sala de cirurgia. Agora, após o caso, existe uma carga extra de ansiedade além do procedimento em si. Os anestesistas são profissionais altamente treinados. É uma classe extremamente criteriosa na formação e intolerante com desvios da prática médica. É uma oportunidade de reforçar a confiança no profissional anestesiologista. Nossa missão, além do juramento de Sócrates ao decidirmos pela anestesiologia, é de nos comprometermos em garantir a segurança do paciente”, desabafou.