Google vai usar você para se defender em um processo antitruste
A alegação do Google de que beneficiou bilhões de consumidores está rapidamente se consolidando como um pilar da estratégia de defesa da empresa
Em duas décadas, o Google acumulou uma quantidade vertiginosa de poder, tornando-se um gigante de busca e publicidade que muitos críticos acreditam ser um monopólio ilegal. Mas o acesso à maioria dos serviços do Google de graça e o fato de ele ser o provedor preferido de muitas pessoas pode salvá-lo de um processo federal que questiona esse suposto monopólio. É o que o Google espera.
A alegação do Google de que beneficiou bilhões de consumidores está rapidamente se consolidando como um pilar da estratégia da empresa para se defender do processo que o Departamento de Justiça apresentou na terça-feira (20).
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Essa posição explora uma mudança na forma como a lei dos EUA trata casos antitruste. Grandes empresas – como a Standard Oil dos Rockefeller e a AT&T (T) da era “Ma Bell” – já foram desmembradas anteriormente por terem sido consideradas prejudiciais à concorrência. Mas agora empresas acusadas de monopólio podem ser poupadas de punição se o governo não conseguir provar que elas estão prejudicando os consumidores ao fixar ou elevar os preços, por exemplo.
Será que os benefícios que o Google oferece para os consumidores devem compensar quaisquer supostos abusos de seu poder econômico? É aí que a empresa e o governo dos EUA podem entrar em conflito no tribunal.
A forma como um juiz responder a essa pergunta pode gerar desdobramentos muito mais amplos. Há profundas tensões entre o que críticos da lei dos EUA dizem (de que ela permitiu décadas de concentração corporativa) e o que seus defensores afirmam ser uma característica do sistema, e não um bug, que mantém o foco estritamente no bem-estar dos consumidores em um mercado livre.
O resultado pode ter consequências permanentes para a internet e para o restante da economia.
Quais são os danos?
Ao contrário de outros países, a lei antitruste dos EUA é aplicada pelos tribunais, e não diretamente pelas agências reguladoras. Se o Departamento de Justiça ou a Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos quiserem ir atrás de uma empresa, eles devem primeiro entrar com uma ação judicial como a que o Google agora enfrenta.
Isso coloca juízes federais em uma posição de muito poder. Ao interpretar as leis antitruste do país, os juízes podem confirmar ou rejeitar propostas de fusões que abalam o setor, decidir se uma empresa prejudicou a concorrência e, sim, determinar o desmembramento de um gigante. Ou podem fechar os olhos para o que muitos considerariam um comportamento anticompetitivo.
A partir da década de 1970, muitos juízes passaram a adotar uma abordagem de pensamento de mercado que moldou casos antitruste ao longo de gerações. A ideia era de que não há nada inerentemente ilegal em uma grande empresa, ou mesmo em um monopólio. Enquanto os consumidores estiverem se beneficiando e o mercado estiver operando com eficiência, o governo não deve se envolver muito.
Décadas de juízes nomeados por ambos os partidos adotaram essa filosofia, muitas vezes observando os preços ao consumidor como a principal métrica para decidir sobre os casos. Ao longo de anos de precedentes judiciais, essa posição se tornou uma característica definidora do litígio antitruste moderno.
“A lei antitruste exige provar três elementos-chave: o primeiro é o poder de mercado. O segundo é o abuso de poder de mercado. E o terceiro é o dano ao consumidor”, enumerou Carl Szabo, vice-presidente e conselheiro geral da NetChoice, uma organização em defesa da tecnologia. O que falta na denúncia do Departamento de Justiça, disse Szabo, é o terceiro elemento.
A escolha do povo
O processo do governo contra o Google se concentra em duas áreas principais. A primeira é a decisão da empresa de tornar o Google o provedor de pesquisa padrão no Android, seu sistema operacional móvel e o mais popular do mundo, que é distribuído em seus próprios telefones e em aparelhos de outros fabricantes. Em segundo lugar estão os contratos do Google com a Apple (AAPL), a Samsung e outros fabricantes de dispositivos, que fazem do Google o navegador padrão em seus telefones.
Ambas as práticas são anticompetitivas, de acordo com a denúncia, em grande parte porque impedem que outros provedores de pesquisa cresçam. Isso supostamente diminui a escolha do consumidor e, como o vice-procurador-geral Jeffrey Rosen disse a repórteres na terça-feira (20), pode significar que “os norte-americanos podem nunca conseguir ver o próximo Google” se a empresa não for impedida.
Mas em uma teleconferência com repórteres na terça-feira (20), representantes do Google observaram que o processo parece não conter alegações específicas de consumidores que foram prejudicados, e argumentaram que as decisões empresariais do Google são perfeitamente justificáveis, em grande parte porque dão aos consumidores o que querem.
“A grande questão é que as pessoas não usam o Google porque têm de usar, elas escolhem usar”, disse a empresa em um post em seu blog oficial respondendo ao processo. “Continuamos totalmente focados em fornecer os serviços gratuitos que ajudam os americanos todos os dias. Porque isso é o que mais importa”.
Ao invocar as preferências dos consumidores e o baixo preço de seus serviços, o que o Google está fazendo é estabelecer as bases para o debate que quer ter, e não o que o governo está levantando em seu processo.
Com base na forma como os tribunais têm lidado com antitruste por décadas, é uma estratégia lógica.
“O dano ao consumidor é um elemento do crime”, disse Szabo. “Se o Departamento de Justiça tem indícios de dano ao consumidor, isso deveria estar na denúncia. Uma vez que não está lá, tenho que assumir que não existe. E qualquer um que já tenha visto um episódio da série ‘Lei e Ordem’ sabe que se não se provar todos os elementos de um crime, não há crime que tenha sido cometido”.
Nova abordagem antitruste
No entanto, o fato de os juízes terem interpretado a lei de uma maneira por décadas não significa que eles não podem mudar de ideia, ou voltar ao básico, disse Sally Hubbard, diretora de estratégia de execução do Open Markets Institute, uma organização de defesa antitruste.
Em essência, ela disse, as leis antitruste dos EUA proíbem danos à concorrência, não apenas danos aos consumidores. “Nada na Seção 1 ou na Seção 2 da Lei Sherman, ou na Lei Clayton diz algo sobre preços ou o bem-estar do consumidor”, disse Hubbard, cuja visão simboliza a pressão de uma nova onda de advogados e defensores para repensar a abordagem antitruste convencional.
A ideia fixa míope e ultrapassada dos juízes nos preços ao consumidor os cegou para outras maneiras pelas quais os consumidores podem ser prejudicados pelas corporações, dizem os ativistas antitruste, especialmente em uma era digital em que serviços como o Google tecnicamente não cobram um centavo dos consumidores, mas ainda assim podem representar grandes problemas para a concorrência.
“A maioria dos mecanismos de busca em geral não cobra um valor em dinheiro dos consumidores”, diz o processo. “No entanto, isso não significa que esses mecanismos de busca são gratuitos. Quando um consumidor usa o Google, ele fornece informações pessoais e atenção em troca de resultados de pesquisa”.
A pressão para revisitar o escopo da lei antitruste está ganhando força em um momento crucial da história dos EUA. Figuras políticas de alto nível, incluindo os senadores Bernie Sanders, Elizabeth Warren e Amy Klobuchar, atribuem muitos dos males econômicos do país ao poder corporativo descontrolado e à falta da aplicação de uma lei antitruste eficaz. A desigualdade está aumentando. Os salários estagnaram. “Milionários e bilionários” tornaram-se um famoso alvo retórico.
Para evitar que as corporações saíssem de controle, a lei antitruste foi escrita de forma proposital para que os reguladores e os tribunais tivessem ampla liberdade para intervir, observou Klobuchar na semana passada, enquanto questionava a candidata à Suprema Corte, Amy Coney Barrett. “Hoje em dia, a interpretação está tão estreita… que é quase impossível para as pessoas apresentarem esses casos de forma mais clara”, afirmou o senador.
A história se repete
O Departamento de Justiça não está tentando abrir um novo caminho no caso do Google, nem argumentar a favor de interpretações alternativas da lei. Em vez disso, está aderindo a uma abordagem mais comprovada.
O processo do Google foi cuidadosamente escrito para seguir, ponto a ponto, um dos casos de tecnologia antitruste mais seminais de todos os tempos, o dos Estados Unidos contra a Microsoft, disse William Kovacic, professor de direito na Universidade George Washington e ex-presidente da Comissão Federal de Comércio dos EUA.
No processo crucial de 1998, o governo alegou que a Microsoft (MSFT) estava ilegalmente usando seu monopólio em sistemas operacionais de desktop para eliminar a concorrência entre os navegadores da web.
Por ironia do destino, o Google agora ocupa a mesma posição da Microsoft, de acordo com a última acusação do Departamento de Justiça.
“Naquela época, o Google alegou que as práticas da Microsoft eram anticompetitivas, e no entanto agora o Google segue a mesma cartilha para sustentar seus próprios monopólios”, diz o processo.
O governo não desmembrou a Microsoft. Mas o acordo resultante que limitou a forma como a Microsoft poderia operar é amplamente reconhecido como tendo aberto caminho para uma nova concorrência em serviços de internet, incluindo a ascensão do Google.
O caso da Microsoft continua sendo um poderoso precedente na lei antitruste dos EUA, disse Kovacic. Ao apresentar ao mesmo tribunal o que diz ser um caso semelhante, o Departamento de Justiça está tentando ficar dentro dos limites da convenção, esperando que um raio caia duas vezes no mesmo lugar.
“O que eles estão dizendo ao tribunal é: ‘Isso já foi visto antes, não é preciso ter medo disso'”, disse Kovacic.
(Texto traduzido, clique aqui para ler o original em inglês)
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