Como espeto vertical giratório ultrapassou tradição e alcançou modernidade

Assar carne em espetos ou varas é provavelmente uma das técnicas mais antigas da humanidade, explica historiador

Jen Rose Smith, da CNN
Técnica une modernidade e tradição na culinária mundial  • Getty Images/ KarlosVBrito7
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Mesmo em seus dias de folga, Raul Morales é reconhecido pelos fãs. Em uma visita recente ao Universal Studios Hollywood, Morales, dono da Taqueria Vista Hermosa em Los Angeles, estava na fila quando ouviu alguém gritar.

“Chamaram: ‘Chef Al Pastor! Chef Al Pastor!’”, contou Morales, rindo. Nascido na Cidade do México, ele ganhou o apelido depois de décadas de trabalho duro.

Ele é a terceira geração de sua família a preparar tacos al pastor, com tortillas frescas recheadas de carne de porco temperada, cortada de um espeto vertical giratório. “Minha receita é muito especial e muito antiga”, disse.

Embora as receitas da família Morales tenham atravessado gerações — e preparos semelhantes, como shawarma e döner, existam há centenas de anos — seus tacos representam uma culinária que é tão contemporânea e internacional quanto antiga e tradicional. Quando você espeta carne em um espeto giratório para assar, logo ela não fica restrita a um único lugar.

“Qualquer lugar com um espeto ou uma espada”

Assar carne em espetos ou varas é provavelmente uma das técnicas mais antigas da humanidade, explica o historiador da alimentação Ken Albala, professor da Universidade do Pacífico.

Banquetes com carne assada em espetos aparecem nas epopeias homéricas Ilíada e Odisseia, escreve Susan Sherratt, professora emérita de Arqueologia do Mediterrâneo Oriental na Universidade de Sheffield, na revista Hesperia.

Espetos de ferro que podem ter sido usados para assar carne surgem no Egeu por volta do século X a.C. Alguns foram encontrados em tumbas de guerreiros, observa Sherratt, sugerindo que esse preparo estava ligado ao convívio masculino e à masculinidade.

“Acho que a associação com os homens tem a ver em parte com a caça, e com o uso de ferramentas ou armas semelhantes às de guerra”, disse Albala. “Quando se comemorava uma vitória, sacrificava-se um animal aos deuses — basicamente um grande churrasco.”

Albala lembra que assar carne não é apenas pendurar um pedaço sobre o fogo. Na verdade, a carne cozinha ao lado da brasa, não em cima dela, o que gera sabores mais ricos.

“Qualquer lugar onde haja um espeto ou uma espada, as pessoas rapidamente descobrem que se cozinhar ao lado do fogo, fica muito mais saboroso”, disse.

Esses primeiros assados provavelmente envolviam animais inteiros ou grandes partes. Mas, séculos atrás, cozinheiros do Império Otomano desenvolveram uma técnica diferente: fatiar finamente a carne crua, empilhando-a em camadas no espeto até formar um bloco denso e afilado que cozinha girando.

Miniaturas de um manuscrito de 1620, encomendado pelo estadista otomano Hafız Ahmed Paşa, mostram cozinheiros fatiando carne de espetos giratórios, conta Mary Işın, autora de "Bountiful Empire: A History of Ottoman Cuisine".

As cenas retratam refeições ao ar livre da elite, o que sugere que o prato podia ser servido em piqueniques reais. “Dá para ver que era algo de classe alta”, disse Işın.

Os registros não especificam o nome desse preparo, mas textos do século XIV descrevem carnes giratórias chamadas çevirme kebabı — literalmente, “kebab virado”. Com o tempo, a receita se espalhou pelo vasto império, que ia da Europa Central ao norte da África e à Península Arábica.

Dos sultões otomanos ao shawarma e aos tacos

O termo çevirme mais tarde entrou no árabe e no inglês como shawarma, prato ainda popular em todo o Oriente Médio e além. Na Turquia, porém, foi substituído por outra palavra: döner.

“Ambos significam algo que gira”, explicou Işın. A palavra döner só apareceu impressa em 1908, em um romance de Hüseyin Rahmi Gürpinar, mas provavelmente já era usada antes.

A forma de servir também mudou. Da exclusividade das elites, o döner passou a ser comida popular. No início do século XIX, já era aclamado por viajantes em Istambul.

“Os estrangeiros concordam que este prato é o mais delicioso do país, e eu penso exatamente o mesmo”, escreveu o francês François Pouqueville, que esteve na cidade em 1800.

Com as migrações, o prato atravessou continentes. Em espanhol, o espeto ficou conhecido como trompo (pião), devido ao formato.

No fim do século xix, imigrantes do Império Otomano — muitos vindos do que hoje é o Líbano — levaram o shawarma ao México, lembra Jeffrey M. Pilcher, professor da Universidade de Toronto e autor de "Planet Taco: A Global History of Mexican Food".

Na década de 1930, em Puebla, famílias libanesas vendiam os chamados tacos árabes, feitos em pão sírio ou tortilhas de farinha. Eles foram o embrião do al pastor, que surgiu algumas décadas depois.

“A segunda geração, já totalmente mexicana, começou a vender tacos al pastor na Cidade do México, em bairros como Condesa”, explicou Pilcher.

Dessa vez, com tortillas de milho e carne de porco — mais acessível do que o cordeiro usado no Oriente Médio. O tempero incorporou ingredientes locais como abacaxi, achiote e pimentas. “O que conhecemos hoje como taco al pastor é um produto dos anos 1960”, disse.

Como o döner atravessou a Europa — e voltou

No início do século XX, migrantes da Ásia Menor levaram o prato à Grécia, onde passou a ser chamado de gyros, do verbo “girar”. Mas foi com o nome turco döner que ele se espalhou pelo continente.

Após a Segunda Guerra, trabalhadores turcos na Alemanha popularizaram a versão local, geralmente servida em pão. Hoje, só Berlim tem cerca de mil kebabarias, e o setor movimenta € 3,5 bilhões (cerca de R$ 22,2 bilhões) por ano na Europa.

O governo turco chegou a solicitar à União Europeia, em 2022, o reconhecimento de origem protegida para o döner, como já ocorre com a mozzarella italiana ou o jamón serrano espanhol.

Na própria Turquia, o prato também evoluiu. “O döner deixou de ser comida de rua para se tornar comida de restaurante”, disse o chef Vedat Başaran. Em Istambul, casas como a Bayramoglu Döner chegam a atender milhares de clientes por dia.

E, em lanchonetes menores, versões em pão pita lembram mais o estilo alemão do que a tradição turca — um caso de ida e volta culinária.

“Tudo que é bom viaja”

“Döner é, sem dúvida, turco”, disse Işın. “Mas tudo que é bom viaja, não é? Você tem uma comida saborosa, leva consigo e ela encontra seu caminho.”

Foi assim que a carne assada ao estilo otomano cruzou o Oriente Médio, a Europa e chegou ao México.

Foi assim também com Raul Morales. Aos sete anos, já ajudava o tio em uma barraquinha de tacos em Michoacán, cortando tomates verdes, jalapeños e pimentas. “Meu tio foi meu mentor, me ensinou tudo”, contou.

Em 2001, já em Los Angeles, abriu sua taqueria no Mercado La Paloma, preparando carne de porco marinada por 24 horas em uma mistura de pimentas, cominho, alho, tomilho e sucos de abacaxi, laranja e uva.

Dois anos depois, o Los Angeles Times elegeu seus tacos al pastor os melhores da cidade, trazendo até hoje uma clientela fiel à Vista Hermosa.

Hoje, a especialidade da família Morales, aprendida ao lado do tio no México, se espalhou pelo mundo. Dá para comer um taco al pastor na Argentina, na Austrália ou em Londres. Em Levi, no Círculo Polar Ártico finlandês, a taqueria Lost Tacos também serve a iguaria.

Morales não se espanta. Para ele, o al pastor é delicioso — um patrimônio vivo que atravessa fronteiras.

“As pessoas realmente amam esses tacos al pastor”, disse.

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