Conhece o caruru? Comida dos deuses criada dentro dos terreiros ganhou as mesas brasileiras

Preparado com quiabo e dendê, essa receita nasceu dentro dos terreiros de Candomblé do Nordeste. E assim como outras Comidas de Santo, acabou sendo incorporado à culinária brasileira e é festejado no dia de São Cosme e Damião

Carolina Dahercolaboração para o Viagem & Gastronomia

Do quintal comprido da casa branca de janelas azuis, vinha uma cantoria ritmada. “São Cosme mandou fazer duas camisinha azul/ No dia da festa dele, São Cosme quer caruru”, repetiam incansavelmente as mulheres sentadas ao redor de uma mesa de madeira, enquanto cortavam o quiabo. Bacias imensas recheadas desse ingrediente de origem africana que ganhou o coração dos brasileiros.

Dizem alguns que a contagem passava de 5.000 quiabos. Tudo para atender aos convidados, que não paravam de chegar. Vez ou outra era possível reconhecer alguns famosos como Regina Casé e Gilberto Gil. Gente que veio de longe até Santo Amaro da Purificação para beijar a mão de Claudionor Vianna Telles Velloso, guardiã dos costumes do Recôncavo Baiano. O ano era 2007 e a anfitriã comemorava 100 anos.

Claudionor entrou para a história como Dona Canô, defensora do dendê, das palavras e das festas populares brasileiras, mãe de oito filhos, incluindo os cantores Caetano Veloso e Maria Bethânia.

Nascida em 16 de setembro, a matriarca da família Velloso (se escreve originalmente com dois l) fazia questão de comemorar seu aniversário com um grande caruru, em homenagem a São Cosme e Damião.

“A cada ano a festa aumentava um pouco mais. Já de véspera começa a corta do quiabo. E era tanta gente que ficava até difícil de passar com os pratos para servir”, lembra a escritora Mabel Velloso, uma das filhas de Dona Canô.

Dona Canô com a filha Mabel Velloso: a festa do caruru acontecia em Santo Amaro sempre no aniversário da matriarca / Reprodução autorizada do livro O Sal é um dom

Dentre dos mais de 30 livros por ela publicados, está “O Sal é um dom – Receitas de Dona Canô”. E lá está, na página 107, o caruru – também na versão preparada com folhas de língua-de-vaca, taioba ou espinafre.

“Essas receitas de família contam um pouco da nossa história de vida. Lembro da minha mãe sempre verificando se estava tudo certo na cozinha. Era quase um ritual e essas lembranças entranham na gente”, diz Mabel.

E o ritual não era só no preparo, mas também na hora de servir. Primeiro vinham as crianças. Depois, os adultos iam servindo um pouquinho de cada receita – vatapá e feijão fradinho nunca faltavam – em montinhos um ao lado do outro. Para acompanhar, uma boa cachacinha.

A festa perdeu seu ritmo desde que Dona Canô morreu, em 2012. Agora, Rodrigo, o filho mais velho entre os homens do clã Velloso, foi quem tomou à frente do preparo do caruru. “Mas é uma festa pequena, só para a família”, completa Mabel.

Na cozinha de Dona Madá

Dona Madalena Freitas, cozinheira de mão cheia (e mãe do cantor Carlinhos Brown), é uma expert no assunto. Aprendeu a fazer o caruru com a vida.

“Eu não conheci minhas avós e minha mãe não gostava de cozinhar”, conta Madá, como é conhecida pelos amigos.

“Casei muito cedo e tive meu primeiro filho aos 16 anos, então a necessidade me fez aprender. A família do meu ex-marido tinha boas cozinheiras e eu ficava só de olho. Às vezes eu perguntava ‘como você faz, porque eu faço assim’. Era mentira! Eu nem sabia como era, só queria mesmo a receita”, completa, rindo.

Dona Madá com o filho Carlinhos Brown: no final do ano, ela abre o restaurante Da Madá, em Salvador, com comidas baianas, incluindo o caruru / Arquivo pessoal/ divulgação

Dona Madá começou a sua carreira na cozinha em 1993, com a Baladinha. Junto com duas amigas, ela servia comida na varanda de casa. Mais tarde, abriu o Cantinho da Tina, que fechou em 2019. Até o final do ano, ela inaugura o De Madá, em um casarão no Candeal, em Salvador. Lá, garante que vai servir o caruru sempre que pedirem.

“Aqui na Bahia, o caruru é muito requisitado por quem segue as religiões de matrizes africanas. Faço sempre no Dia de São Cosme e Damião, no Dia das Crianças e também no Dia de Santa Bárbara (4 de dezembro)”, explica.

Mas o que é o caruru?

Segundo dona Madá, o caruru é uma receita preparada com quiabo picadinho, camarão seco, cebola, amendoim, castanha de caju e azeite de dendê. “Tem a mesma base do vatapá”, resume. No entanto, é preciso aqui explicar que existe uma diferença entre o caruru e o caruru de Cosme e Damião, que nasceu dentro dos terreiros de candomblé do Nordeste.

“O Caruru de Cosme é uma oferenda a diversos Orixás. Aqui no Brasil, com o sincretismo religioso, acabou que os santos gêmeos, nascidos no Oriente Médio, se assemelham ao Ibeji da cultura iorubá”, afirma o pesquisador José Carmo, sócio do restaurante Casa de Ieda, em São Paulo.

Durante o período de setembro, a casa oferece o Caruru de Cosme que, além do preparo com o quiabo – que é uma oferenda a Xangô – vem com outros pratos em homenagem a diversos orixás, como é o caso do vatapá (para Oxum), acarajé (para Iansã) e acaçá ou milho branco (para Oxalá).

Caruru: prato preparado com quiabo e dendê muito tradicional no Nordeste, principalmente na Bahia / Zé do Carmo/ divulgação

Comida de Santo

Nas religiões afro-brasileiras, existem várias oferendas destinadas aos orixás que estão incluídas dentro da chamada Comida de Santo. Segundo o livro “Culinária Brasileira, Muito Prazer”, de Roberta Malta Saldanha, “ao prepará-las, deve-se respeitar alguns preceitos: o mel é proibido a Oxóssi, o carneiro não pode sequer entrar e uma casa consagrada a Iansã, o azeite de dendê nunca deve ser oferecido a Oxalá.”

Muitos desses pratos, no entanto, deixaram o terreiro e acabaram sendo incorporados a culinária brasileira. Como é o caso do caruru.

Viva Cosme e Damião!

Segundo a tradição, Cosme e Damião eram médicos e viveram no século 3. Ambos teriam sido martirizados na Síria durante as perseguições do imperador Diocleciano. Depois de mortos, viraram os protetores dos médicos e das crianças que sofrem violência.

No Brasil, pelo sincretismo religioso, os santos católicos acabaram sendo assemelhados a Ibeji, orixá dos iorubás que também protege as crianças e cuida para que o tempo não amargue suas vidas.

A festa de São Cosme e Damião é comemorada no dia 27 de setembro. Em alguns lugares do Brasil, são distribuídos doces em saquinhos de papel para a criançada. Já em outras regiões, o caruru é servido para quem quiser chegar.

“Os adultos cantam músicas dos rituais dos santos, enquanto as portas são abertas para que as pessoas entrem, em fila, para receber seu prato, e assim todos confraternizam. Para essa festa não precisa de convite: quem quiser pode vir buscar o seu prato e participar”, afirmam Tereza Paim e Sonia Robatto, no livro “Na Mesa Baiana – Receitas, histórias, temperos e espírito tipicamente baianos”.

Ieda Matos, do restaurante Casa de Ieda, em São Paulo: Caruru de Cosme completo, com direito a outros pratos além do preparado com quiabo / Zé Carmo/ divulgação

Receita de Caruru por Ieda Matos, do restaurante Casa de Ieda, São Paulo

Ingredientes

  • 30 quiabos
  • 2 cebolas médias
  • 80 g de camarão seco defumado
  • 3 colheres (sopa) de azeite de dendê
  • meio copo americano de água
  • Sal a gosto

Modo de preparo

Corte os quiabos na longitudinal em cruz, formando quatro partes. Corte em pedaços bem pequenos. Bata no liquidificador as cebolas e os camarões. Reserve. Em uma panela, aqueça 3 colheres (sopa) de azeite de dendê e refogue a cebola batida com camarão. Adicione o quiabo e refogue. Junte a água e deixe cozinhar, mexendo sempre. Cerca de 5 minutos depois da primeira fervura, abaixe o fogo e mexa, para evitar que pegue o fundo da panela. Mantenha em fogo baixo por aproximadamente 25 minutos. Como o camarão afeta o tempero, experimente e verifique se precisa ser adicionado mais sal. Finalize com um fio de azeite de dendê.

Dica de Ieda: Use quiabos novos, por serem mais moles e sem fibras, além de mais saborosos. Se tiver dúvidas ao comprar a granel, lembre de quebrar a pontinha. Se não separar e ficar uma fibra, é porque já está muito maduro.

Receita Caruru de folha de Dona Canô

Ingredientes

  • 100 quiabos cortados
  • ½ kg de camarão seco moído
  • 1 xícara de amendoim torrado e moído
  • 1 xícara de castanha-de-caju torrada e moída
  • 1 xícara de azeite de dendê
  • 3 cebolas batidas no liquidificador
  • 1 pedaço de gengibre ralado
  • Folhas de taioba, espinafre ou língua-de-vaca
  • Sal a gosto

Modo de preparo

Jogue os quiabos cortados numa panela com água fervente. Deixe os quiabos cozinharem até os caroços ficarem cor de rosa. Coloque os temperos e deixe cozinha bem, até ficar com “cara de velho.” O caruru de folha é igual ao caruru só de quiabo. Para ficar mais gostoso, juntar folhas de língua-de-vaca (uma espécie de almeirão), de taioba ou espinafre, aferventadas, escorridas e bem cortadinhas ou batidas no liquidificador com um pouco de leite de coco, até formar um tipo de pasta. Camarão seco moído, cebolas batidas no liquidificador, azeite de dendê, castanha e amendoim torrados e moídos misturado aos quiabos e às folhas já bem cozidas dão o toque final.


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