Mar de chocolate em Ilhéus: fazendas históricas ensinam produção de cacau

O chamado chocolate de origem ganhou força com produtores locais, que desenvolvem o sistema “bean-to-bar”

Carolina Daher, colaboração para o Viagem & Gastronomia
Cacau torrado
No Sul da Bahia, fazendas históricas abrem suas portas para ensinar sobre a produção do cacau  • Carolina Daher
Compartilhar matéria

Entre o cheiro doce das amêndoas fermentadas, o verde espesso da Mata Atlântica e o calor úmido do Sul da Bahia, corre a Estrada do Chocolate — um trecho de 43 quilômetros entre Ilhéus e Uruçuca, onde o tempo parece se dobrar entre o passado dos coronéis e a persistência de uma terra fértil.

Esse é também o cenário em que Jorge Amado fincou suas palavras e personagens. É a geografia mítica de “Gabriela, Cravo e Canela”, de 1958, que eternizou o ciclo do cacau como espinha dorsal econômica, social e emocional da região.

“Ilhéus era a cidade mais rica da Bahia, o cacau dava dinheiro como nunca, os coronéis se multiplicavam...”, diz um trecho do livro, que fez Gabriela ganhar vida nas telas, primeiro no corpo da atriz Sônia Braga e, depois, no de Juliana Paes.

A Estrada do Chocolate é mais do que um caminho asfaltado, é uma linha do tempo que resiste o passar dos anos. Inaugurada em 2010, liga fazendas centenárias, casarões em ruínas, engenhos abandonados, cidades que viveram o luxo do “ouro marrom” e comunidades que reinventam o passado com olhos no turismo, na sustentabilidade e no resgate cultural.

Além da Estrada do Chocolate há outras rotas para quem se interessa pelo assunto, como a Costa do Cacau, a Rota do Cacau e a Rota do Chocolate.

No romance de Jorge Amado, na Ilhéus dos anos 1920, o cacau é mais do que lavoura: é símbolo de poder e vaidade que, de certa forma, ainda pulsa por ali. Gabriela também continua viva, presente em restaurantes, feiras e no próprio Museu Jorge Amado, instalado na casa onde viveu o escritor.

História do cacau na região

O cacau chegou na região no século XVIII pelas mãos do colonizador francês Luiz Frederico Warneau, que enviou do Pará para a Bahia algumas sementes da fruta. Já nas primeiras décadas do século XX, o cacau era o principal produto de exportação do estado.

Até que, em 1989, a vassoura-de-bruxa, uma doença fúngica que deforma e seca os ramos, lembrando uma vassoura velha, quase dizimou toda a lavoura na região.

Reinventar-se foi preciso. “Saímos de uma liderança mundial na década de 1960, de 450 mil toneladas, para 90 mil toneladas no auge da crise da vassoura-de-bruxa. Hoje, retornamos para 240 mil toneladas, sendo 95% da produção na Bahia e Pará”, explica Marcos Lessa, CEO do grupo M21 e criador do Chocolat Festival, maior evento de chocolates das Américas, que acontece em Ilhéus desde 2009.

Atualmente, a Bahia conta com cerca de 30 mil produtores, a maioria pequenos. “Mais de 70% da produção de cacau é feita por agricultura familiar”, afirma Maurício Galvão, secretário de turismo de Ilhéus.

Há pelo menos 15 anos, o cacau baiano vem percorrendo outra história • Carolina Daher
Há pelo menos 15 anos, o cacau baiano vem percorrendo outra história • Carolina Daher

No mundo, o Brasil ocupa o sexto lugar em volume. Já dentro do país, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Pará lidera na produção e a Bahia em número de indústrias do setor.

Há pelo menos 15 anos, o cacau baiano vem percorrendo outra história. Deixou ser commodity para se transformar em iguaria. O chamado chocolate de origem ganhou força com produtores locais desenvolvendo o sistema “bean-to-bar” (da amêndoa para a barra).

“Todas as vezes que vocês comerem um chocolate, podem comer sem culpa, porque estamos trabalhando de uma forma em que a preservação ambiental é levada à sério”, diz Gerson Marques, da Fazenda Yrerê. Ele se refere ao sistema agroflorestal de plantio comum na região, a Cabruca, onde o cacau é cultivado à sombra de árvores nativas.

De portas abertas ao turismo

A região, que já viu seu cacau parar nos quatro cantos do mundo, agora vê a fruta atraindo gente interessada em sua história. O turismo vem ganhando fôlego com rotas desenhadas e propriedades abrindo suas portas para que o visitante conheça de perto todo o processo de produção.

O percurso do cacau até virar chocolate começa no campo. Protegidos por árvores nativas como jaqueiras, jequitibás e jacarandá, o cacau é colhido manualmente. Sendo assim, é possível priorizar o tempo de colheita, privilegiando os maduros.

Depois, com um instrumento chamado podão, o fruto é aberto para a retirada das amêndoas. Em seguida, elas são fermentadas — cada produtor faz de uma forma, alguns deixam por dias dentro da própria fruta, outros levam direto para os cochos — e depois vão para a secagem nas barcaças.

Como no café, a torra é um processo delicado e decisivo no aroma e sabor. Com o descasque, os nibs são moídos até se transformarem em uma massa, que é aquecida para eliminar ácidos indesejados.

À massa, são acrescentados açúcar, manteiga de cacau, leite, frutas e castanhas conforme a receita final. Então, o chocolate é temperado para ganhar brilho e textura. Aí é só moldar, embalar e está pronto para seguir para as prateleiras.

Produção de chocolate "bean-to-bar" ganha holofotes no Sul da Bahia • Carolina Daher
Produção de chocolate "bean-to-bar" ganha holofotes no Sul da Bahia • Carolina Daher

Uma das fazendas que recebe turistas é a própria Yrerê. Gerson passeia pelas trilhas abertas em mata preservada até chegar ao cacaueiro. Explica sobre fermentação, o sistema Cabruca e faz com que os visitantes percebam o quanto a fruta fresca com sua polpa branca e gelatinosa pouco de assemelha em sabor ao chocolate, preparado exclusivamente de sua amêndoa.

Depois, o grupo segue até a sede, onde é servida uma degustação com chocolates autorais com diversos teores de cacau. “Aqui deixamos a fermentação acontecer dentro da própria fruta por quatro dias e depois mais quatro na caixa. Isso garante um dulçor a mais”, explica.

Fundada em 1855, a fazenda Riachuelo leva o turista para uma realidade tecnológica. Na propriedade, de dois mil hectares, está instalada a fábrica do Chocolate Mendoá e é possível visualizar todo o processo de uma indústria que tem o total controle da cadeia produtiva.

O passeio começa na colheita e termina com o chocolate sendo embalado e seguindo para expedição. Com prêmios internacionais, a Mendoá processa cerca de 180 quilos de chocolate por dia. A fazenda tem aproximadamente 100 funcionários e cerca de 20 famílias que vivem na propriedade.

Conheça algumas fazendas que recebem visitantes no Sul da Bahia:

  • Fazenda Yrerê: Rodovia Jorge Amado, km 11, Vila Cachoeira, Ilhéus - BA / Horário de funcionamento: segunda a sábado, das 9h30 às 11h / Tel.: (73) 3656-5054;
  • Fazenda Riachuelo: Rodovia Ilhéus-Uruçuca, km 20 - BA / Horário de funcionamento: segunda a quinta, das 8h30 às 10h, das 10h15 às 11h45, das 13h15 às 14h45 e das 15h às 16h30; sexta, das 8h30 às 10h, das 10h15 às 11h45 e das 13h15 às 14h45 / Tel: (71) 99973-0192;
  • Fazenda Provisão: Rodovia Ilhéus-Uruçuca, km 27 - BA / Horário de funcionamento: todos os dias, das 9h às 16h / Necessário agendamento prévio / Tel.: (71) 99205-4710;
  • Fazenda Capela Velha: Margem Direita do Rio Mocombo, SN, Zona Rural, Uruçuca - BA / Horário de funcionamento: segunda a sexta, das 9h30 às 11h30 e das 14h30 às 16h30; sábado, das 9h30 às 11h30 / Tel.: (73) 99903-0123;
  • Fazenda Independência: Estrada do Chocolate, 200, Uruçuca - BA / Horário de funcionamento: com agendamento prévio, das 9h às 11h30 (grupos de 15 a 30 pessoas) / Tel.: (71) 99121-4619.
Acompanhe Gastronomia nas Redes Sociais