Esqueça o Natal: na Sicília, já estão pensando na Páscoa

Em Caltanissetta, celebração pascal envolve procissões com figuras em tamanho real, devotos caminhando descalços e a entrega da chave da cidade a um cidadão comum

Julia Buckley, da CNN
Páscoa em Caltanissetta, Itália
Na Sexta-feira Santa, o Cristo Nero é levado em procissão pela cidade, carregado por fiéis descalços  • Julia Buckley/CNN
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A contagem regressiva para as festas de fim de ano começou. Mercados de Natal, vinho quente e patinação no gelo: ao redor do mundo, em todos os continentes, as pessoas estão começando a se preparar para entrar no clima festivo. Mas uma cidade siciliana já está focada no que vem depois: a Páscoa.

Caltanissetta, situada bem no centro da maior ilha do Mediterrâneo, é conhecida em toda a Itália por suas celebrações e procissões de Páscoa.

Esqueça a caça aos ovos de chocolate e coelhinhos fofos; pense em figuras em tamanho real narrando a Paixão de Cristo em detalhes dilacerantes, fiéis devotos caminhando descalços pelas ruas e as chaves da cidade sendo entregues a um cidadão comum. No passado, as celebrações incluíam até libertar um condenado da prisão. Infelizmente, para quem está preso hoje em Caltanissetta, essa é uma tradição que ficou no passado.

As tradições de Páscoa – ainda tão profundamente sentidas que milhares de emigrantes de Caltanissetta voltam todos os anos para as celebrações – datam de séculos atrás.

A mais espetacular acontece toda Quinta-feira Santa, com a procissão das "vare": cenas em tamanho real da Via Sacra, que são levadas para percorrer a cidade desde o pôr do sol até as primeiras horas da manhã.

As cenas das "vare" foram feitas pela dupla de artistas Francesco e Vincenzo Biangardi, pai e filho, entre 1883 e 1902. Ambos de Nápoles, eles haviam se mudado para o sul para trabalhar como artistas na Calábria e na Sicília antes de se transferirem para Caltanissetta para criar essas figuras – que se tornariam sua obra-prima.

Em plataformas sobre rodas, na altura dos ombros, elas se erguem imponentes sobre a multidão. Cada uma retrata, muitas vezes em detalhes angustiantes, a jornada de Cristo até a cruz.

Lá está ele diante do sumo sacerdote Caifás, após ter sido chicoteado; tropeçando diante de Verônica, que enxugará seu rosto com o véu; e rezando no jardim do Getsêmani.

Há a Última Ceia, uma grande cena em que os discípulos se voltam uns contra os outros para descobrir quem traiu o mestre. À sua maneira, é tão espetacular quanto o famoso afresco a “Última Ceia” de Leonardo da Vinci, em Milão.

E há Maria e o jovem São João abraçando-o enquanto ele é retirado da cruz, em uma cena de “Pietà” tão terna quanto a famosa escultura de Michelangelo na Basílica de São Pedro.

Ao todo, existem 16 "vare", das quais 15 foram feitas pela dupla Biangardi, usando papel machê, gesso e madeira.

Cada carro é empurrado por membros de seu respectivo grupo • Julia Buckley/CNN
Cada carro é empurrado por membros de seu respectivo grupo • Julia Buckley/CNN

“São muito importantes para a cidade”, diz Salvatore Petrantoni, conselheiro de Caltanissetta responsável por eventos, incluindo a Semana Santa. “Uma 'vara' sozinha não teria muito valor, mas como grupo, dentro da tradição, elas se tornam importantes.”

De fato, quando são conduzidas pelas ruas de Caltanissetta em uma grande procissão, causam forte impacto. Para começar, são enormes: cada figura é ao menos em tamanho real, e algumas são ainda maiores. E são montadas em plataformas móveis que começam aproximadamente na altura dos ombros das equipes de homens fortes que precisam empurrá-las.

Partindo exatamente às 20h, cada grupo é acompanhado por uma banda marcial. A música de cada banda compete com a das outras ao redor, fazendo as ruas estreitas de Caltanissetta ecoarem com marchas fúnebres e solenes.

E além das pessoas que empurram cada andor – pode ser necessário até seis pessoas para movê-las, embora hoje recebam ajuda de rodas motorizadas sob os carros – há outros que as acompanham. O público segue sua "vara" na procissão enquanto membros das guildas abrem caminho, acendendo sinalizadores nas ruas para anunciar a chegada dos carros.

Enquanto isso, cada "vara" tem um líder, impecavelmente vestido com fraque, que conduz o movimento do andor com um bastão de metal, batendo-o no sistema de roldanas do carro para indicar aos que empurram na parte detrás quando parar e quando recomeçar.

À frente de todos vai a "cuntastoria", ou “contadora de histórias”, uma mulher que declama a narrativa dos evangelhos em siciliano.

É um balé executado com precisão, que transporta os espectadores diretamente para a emoção da história da Páscoa nesta região profundamente católica da Itália. Milhares se concentram na praça principal da cidade, em frente à catedral, para ver a procissão partir, abençoada pelo bispo; para seguir os carros subindo, descendo e contornando a cidade montanhosa; ou para sair de casa nas primeiras horas do dia e assistir aos carros atravessando as ruas residenciais estreitas.

Para onde quer que a procissão vá, há centenas de pessoas esperando por ela. Elas se abrem silenciosamente como o Mar Vermelho quando os carros se aproximam.

Arte para o povo

As cenas não são apenas belas artisticamente; elas têm significado para a comunidade. Cada uma foi atribuída a um grupo diferente, ou guilda, de trabalhadores da cidade, de padeiros a ferreiros, de carpinteiros a encanadores. Várias foram atribuídas a mineiros – a área ao redor de Caltanissetta era famosa por suas minas de enxofre no século XIX.

“Foi uma forma de agradecer por não haver desastres nas minas”, diz Petrantoni. Uma delas foi encomendada por um grupo de mineiros que sobreviveram a uma explosão que tragicamente matou seus colegas de trabalho.

A procissão das "vare", que parte na Quinta-feira Santa, é o mais espetacular dos rituais pascais de Caltanissetta, mas está longe de ser o único. Aqui, a tradição continua por toda a Semana Santa.

Quarta-feira é o dia da Real Maestranza – uma associação dos artesãos históricos da cidade. O grupo remonta ao período medieval, quando os governantes de Caltanissetta formaram um exército particular para defender a cidade em caso de invasão sarracena. Hoje, trata-se de um grupo civil dividido em subgrupos, como guildas, cada um representando uma profissão: pintores e decoradores, confeiteiros, carpinteiros, cabeleireiros e assim por diante.

A Real Maestranza começou como um exército privado na Idade Média. Hoje, é um conjunto de grupos que representam diferentes profissões • Julia Buckley/CNN
A Real Maestranza começou como um exército privado na Idade Média. Hoje, é um conjunto de grupos que representam diferentes profissões • Julia Buckley/CNN

Esses civis tomam a cidade na quarta-feira antes da Páscoa, quando o “capitão” da Real Maestranza – escolhido entre um dos subgrupos a cada ano – vai à prefeitura com uma espada simbólica e recebe a chave da cidade sobre uma almofada.

O prefeito se despede de seu poder; pelo restante da Semana Santa, esse capitão é o “padrono della città”, ou senhor da cidade, responsável por Caltanissetta. No passado, ele (sempre um homem) podia escolher um prisioneiro da cadeia local para ser libertado.

Infelizmente para os malfeitores atuais, o capitão já não tem mais o poder de conceder indulto; ainda assim, ele veste o extravagante traje tradicional de fraque, calças curtas e meias brancas enquanto exerce seu poder sobre os cidadãos durante a semana. Os membros da Real Maestranza também realizam uma procissão de "varicedde" – pequenas vare – na noite de quarta-feira.

Uma estátua milagrosa

Mas para os verdadeiramente devotos nisseni (como são chamados os naturais de Caltanissetta), a Sexta-feira Santa é a noite mais importante. É quando, novamente liderados pela Real Maestranza, eles percorrem a cidade com o Cristo Nero, ou Cristo Negro: uma escultura de madeira do crucifixo que se acredita ser milagrosa e é tão amada que é conhecida como o "Signore della Città", ou Senhor da Cidade.

Em uma procissão espetacular, o Cristo Nero é retirado do seu local na igreja Santuário Signore della Città; do lado de fora, é coroado com um globo dourado e levado em procissão pela colina até o centro da cidade, antes de seguir o trajeto da procissão.

A escultura é amada pelos nisseni não apenas por ser considerada milagrosa, mas também por estar ligada aos mais pobres da sociedade, explica Tony Gangitano, cineasta italiano natural de Caltanissetta. Acredita-se que foi descoberta por "fogliamari" – pessoas que sobreviviam colhendo ervas e folhas silvestres para vender nas cidades – em 1618.

Ao colherem folhas ("fogliamari" significa “folhas amargas”) nos arredores da cidade, eles teriam entrado em uma caverna onde encontraram duas velas acesas ao lado da escultura. Quando lavaram o crucifixo, a cor escureceu imediatamente, dando origem ao nome Cristo Nero.

O filme de Tony Gangitano, "U Cristu Truvatu", conta a história de Cristo Nero de Caltanissetta • Tony Gangitano
O filme de Tony Gangitano, "U Cristu Truvatu", conta a história de Cristo Nero de Caltanissetta • Tony Gangitano

Pesquisas modernas sugerem que a escultura é de origem bizantina, tornando-a uma das mais antigas representações da crucificação na Sicília. Até hoje, ninguém sabe de onde veio ou como foi parar naquela caverna fora de Caltanissetta.

“Sempre fui fascinado pelas procissões”, diz Gangitano, que hoje vive entre a Sicília e o continente. Ele planejou fazer um curta-metragem sobre o ritual, mas o transformou em um longa-metragem que mistura documentário e reconstituição histórica.

Estrelado pelo renomado ator italiano Gaetano Aronica e filmado na parte medieval da cidade construída pelos conquistadores árabes, que governaram a região no período medieval, “U Cristu Truvatu” ganhou o prêmio principal no Festival Internacional de Cinema Cavalo de Ouro de Taipei em 2022.

Hoje, os "fogliamari" ainda existem – ao caminhar por Caltanissetta durante o dia, é comum ver vans e carros parados à beira da estrada com ervas e folhas selvagens recém-colhidas à venda nos capôs. Membros de sua associação lideram a procissão da Sexta-feira Santa, à frente dos padres locais.

Eles são seguidos pelos nisseni, que caminham descalços pela cidade – aqueles que fizeram uma promessa ao Cristo Nero – pelos membros da Real Maestranza, trajados com terno e botas, cada um carregando uma lanterna. Alguns carregam espadas, lanças ou escudos.

Na Quinta-feira Santa, a procissão com imagens em tamanho real percorre a cidade • Julia Buckley/CNN
Na Quinta-feira Santa, a procissão com imagens em tamanho real percorre a cidade • Julia Buckley/CNN

“É a procissão mais silenciosa e com maior número de participantes”, diz Petrantoni sobre o evento da Sexta-feira Santa. Enquanto caminham pelas ruas quietas, os "fogliamari" entoam cantos e lamentações em uma mistura de siciliano e latim, o que Gangitano chama de “um dialeto extremamente fechado”.

É uma visão extraordinária, quase bíblica – e para os fiéis, é um dos eventos mais comoventes da Páscoa na Sicília. “As pessoas choram porque sabem que terão de esperar mais um ano”, diz Petrantoni, que afirma que, dos 60 mil habitantes de Caltanissetta, cerca de metade participa, enquanto cerca de mil formam o núcleo oficial da procissão, caminhando descalços pela cidade durante várias horas.

“As tradições são sentidas com mais intensidade na Sicília porque as vivenciamos desde a infância”, diz Petrantoni, que caminha descalço ao lado do Cristo Nero e sente a importância das procissões tão profundamente que o cargo de conselheiro para eventos foi criado para ele. Sua influência permanece ao longo do ano – vitrines de lojas fechadas exibem imagens das "vare" e das outras procissões, lembrando Caltanissetta o ano todo de suas tradições pascais.

Você também será lembrado disso se entrar na Pasticceria de Fraia, uma das famosas confeitarias de Caltanissetta: é lá que fazem a spina santa, um doce em formato de coroa de espinhos, com recheio de geleia de mirtilo. Ele foi criado para a visita do Papa João Paulo II em 1993. “Ele disse que foi a melhor coisa que já comeu”, diz Gangitano, orgulhoso.

Para Petrantoni, “as 'vare' nos lembram do que sempre fomos. Há tanta história – por isso cuidamos tão bem delas.” Em vez de ser apenas uma procissão anual, ele está tentando usá-las para outros eventos, trazendo algumas "varicedde" em setembro para uma celebração. Embora as "vare" estejam sempre em sua mente – e sempre em exposição nas vitrines das lojas pela cidade – em fevereiro começam os preparativos para a Semana Santa de 2026.

Gangitano, que se especializa em fazer filmes sobre a Sicília, diz que, mesmo em um mundo em mudança, manter essas tradições é fundamental. “Elas estão na raiz da identidade de cada cidade, de cada pessoa”, afirma. “Se não conhecemos o passado, não podemos enfrentar o presente.”

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