Pedido de casamento, carros alegóricos e eleição da rainha: a megafesta da vindima em Mendoza

Festa anual na principal província viticultora da Argentina é celebração histórica e cultural que joga luz ao enoturismo da região

Saulo Tafarelodo Viagem & Gastronomia , Mendoza, Argentina

Não é de se espantar que a província líder na produção de vinhos da Argentina tenha uma festa da colheita da uva à altura de seus números.

Segundo dados oficiais, Mendoza produz 78% dos vinhos de todo o país “hermano” e tem uma área destinada às vinhas de quase 149 mil hectares – frente aos 211 mil de toda a Argentina.

Com a imponente Cordilheira dos Andes como quintal, Mendoza tem entre suas principais atividades econômicas a viticultura, assim como o turismo, o comércio, os restaurantes e hotéis – estes últimos atrelados em sua massiva maioria ao enoturismo.

E é com uma agenda intensa de festas, oferendas, bênçãos, desfiles públicos e uma grande celebração com mais de 30 mil pessoas no teatro grego da capital mendocina que o ritual da vindima é comemorado anualmente. O evento marca uma das épocas de maior movimento de turismo nacional e internacional na região, jogando luz também às mais de 200 vinícolas locais abertas para visita.

A Festa Nacional da Vindima de Mendoza é o ápice dos festejos em torno da terra e do vinho, uma amostra da cultura e das tradições mendocinas que define também os próximos passos do setor ao longo do ano, como a elaboração de novas safras.

Existente de maneira oficial desde 1936, a comemoração simbólica que dá pontapé na colheita na região é hoje, além de uma festa a nível nacional, um espetáculo antropológico reconhecido pela Organização Internacional da Vinha e do Vinho (OIV).

A festança e o turismo

A colheita das uvas ocorre em Mendoza no verão e majoritariamente no mês de março, podendo se estender até o fim de abril. Logo, o ato central da Festa Nacional da Vindima acontece entre fevereiro e o começo de março, para, simbolicamente, marcar o início da esperada colheita.

Mas as celebrações começam muito antes, com eventos menores em bairros e distritos das cidades da província.

“A festa não é um evento só neste período. As primeiras comemorações começaram em outubro do ano passado com as primeiras festas distritais e aí tivemos mais de 200 eventos até chegar ao ato central”, conta Nora Vicario, ministra de Cultura e Turismo de Mendoza, em relação à festa de 2023, que ocorreu no início deste mês.

Todas estas festividades culminam na semana dos atos centrais na capital Mendoza, que englobam bênção dos frutos, apresentação das candidatas a rainha da vindima, fórum de investimentos e negócios e desfiles pelas principais ruas da cidade.

Neste ano, a cerimônia de bênção dos frutos ocorreu na noite de 26 de fevereiro com a participação da Orquestra Filarmônica de Mendoza e um coral de 136 cantores. A cerimônia abençoou os frutos com a presença da imagem da Virgen de la Carrodilla, a padroeira das vinhas, e de representantes dos povos originários.

Com a chegada do início de março, as ruas de Mendoza foram tomadas por moradores e turistas com desfiles para lá de alegres em carros alegóricos, assim como a passagem de típicos gaúchos e as antigas rainhas da vindima. Engana-se, porém, quem pensa que apenas os amantes do vinho participam da festa.

“Tinha muita gente, era um pessoal bem local, com famílias e crianças. Elas faziam cestinhas para pegar as frutas que as rainhas de cada cidade jogavam de cima dos caminhões. Chegavam a jogar melão nas pessoas!”, conta Marina Menossi, arquiteta de São Paulo que estava a passeio por Mendoza no início de março.

Junto do companheiro Renan Sampaio a brasileira pôde conferir de perto as tradições típicas pela manhã do sábado, dia 4 de março.

“Foi bem interessante. É algo bem local, mas também foi o dia que mais vimos a cidade cheia”, diz Marina, que destaca que as comemorações têm um “quê” de carnaval, mas com espírito mais regional e familiar.

Ela e Renan fazem parte dos visitantes internacionais que engrossam o turismo em Mendoza – cerca de 90 mil deles desembarcaram por ali na época da festa da vindima neste ano. Ambos também são brasileiros, nacionalidade estrangeira que mais visita a região ao lado dos turistas do Chile, segundo fontes do governo mendocino ouvidas pela reportagem.

Atualmente, há voos diretos do Brasil para Mendoza a partir do aeroporto de Guarulhos operados pela Gol e Latam. A partir de 11 de abril, a Aerolíneas Argentinas passa a fazer a mesma rota – no início do mesmo mês, porém, a conexão Rio-Mendoza, feita apenas neste verão, deixa de ser realizada.

Segundo a Ministra de Cultura e Turismo de Mendoza, todo o turismo regional tem o mesmo objetivo pós-pandemia: levantar sua rota internacional, a qual está acoplada a um plano de conectividade entre destinos.

Trabalhamos para incorporar na segunda parte do plano de conectividade voos diretos a Madrid e ir trabalhando outros mais regionais, como São Paulo, Rio, Santiago, Lima e Panamá, e seguir trabalhando para que Mendoza se torne um hub

Nora Vicario

A ministra ainda destaca que Mendoza está dentro de um circuito turístico nacional que liga outras importantes cidades argentinas, como Córdoba, Rosário, Bariloche e Buenos Aires, para citar algumas.

De acordo com dados do governo de Mendoza, em 2022, o turismo internacional deixou na província US$ 151,8 milhões, aproximadamente R$ 802 milhões na cotação atual.

“Enquanto os turistas argentinos trazem movimento e volume à economia, o turismo internacional injeta dinheiro, já que é um turismo de dinheiro forte, muito importante para Mendoza”, pontua Nora Vicario.

Show teatral para mais de 30 mil pessoas

O auge de toda a festividade em torno da vindima acontece com um show teatral e a eleição da rainha no Teatro Grego Frank Romero Day, na capital Mendoza.

O teatro aberto na forma de semicírculo fica numa parte elevada da cidade, dentro do enorme Parque General San Martín, de 450 hectares, e é dividido em seis setores, cada um batizado com o nome de uma uva, em que é capaz de abrigar 20 mil pessoas sentadas – outras 10 mil podem ficar nas colinas circundantes.

Finalizado em 1963, desde então é palco para o ato central da Festa Nacional da Vindima, salvo em 2002, quando a festa aconteceu em outro estádio da cidade, e em 2021, quando a pandemia obrigou a cerimônia a ocorrer de maneira cinematográfica.

Já 2023 marcou a segunda edição da festa no teatro após as flexibilizações da pandemia, em que se podia ver e ouvir de longe a exaltação do povo mendocino na noite do dia 4 de março, incluindo a presença de importantes personalidades da mídia argentina e de governantes.

Na entrada do teatro, uma movimentação de pessoas com tambores e pôsteres com os rostos das candidatas a rainha da vindima animava as filas.

Passada a segurança e a checagem de ingressos (que custam entre 1.200 e 2 mil pesos, ou entre R$ 30 e R$ 50, e esgotam rapidamente), as torcidas organizadas das candidatas tomavam corpo e se aninhavam em diferentes pontos da arquibancada, nunca perdendo a exaltação.

Logo, os 3.400 m² do palco, rodeado ainda por torres de iluminação e de som de 14 metros de altura, foram preenchidos por 1.050 artistas, entre bailarinas e bailarinos, atores e músicos, os quais usaram mais de 1.600 peças de roupa, o que resultou em 5.500 metros de tecidos variados.

Com uma orquestra ao vivo, o show teve início com danças que remetiam a uma oferenda à mãe natureza.

Ao longo de 1h30 houve ainda reverência às águas da cordilheira, a retomada da história de Mendoza, a lembrança do general San Martín, que participou do processo de independência da Argentina (e foi ovacionado pela plateia), e também passagens sobre educação ambiental.

Com ajuda de telões e sistema de áudio imersivo, o show foi marcado por jogos de luzes e arrematado com fogos pirotécnicos.

Rainha da vindima

Um dos momentos mais aguardados da festa, porém, é a eleição da rainha e da vice-rainha da vindima, uma tradição que reúne 18 candidatas que representam 18 localidades da província de Mendoza.

Após a finalização do show, o palco ganha um corpo de apresentadores que, um a um, lêem em voz alta os 250 votos que coroam a rainha. Os votos fazem parte de um sistema eletrônico de votação que, neste ano, foram realizados por pessoas cujo último número do RG fosse 8.

Na entrada do teatro havia três computadores cujas telas continham as fotos das candidatas e do departamento que representavam.

Assim, a cada voto anunciado, as torcidas organizadas faziam uma verdadeira algazarra.

Ao final da noite, Ana Laura Verde, que recebeu 79 votos e representa a cidade de La Paz, foi coroada a Rainha da Vindima 2023. A partir de agora, ela ajuda a promover ainda mais o potencial vinífero da província. Com 35 votos, a vice é Gemina Navarro, da cidade de Tupungato.

“Para mim é uma emoção muito grande, algo lindo. Como a rainha da vindima represento todas as mulheres trabalhadoras dos nossos vinhedos e de nossa agricultura. A partir de agora seremos outras pessoas pois temos muitas responsabilidades a cumprir”, diz Ana Laura, que, aos 22 anos, estuda enologia e produz vinho caseiro.

Após a celebração no teatro grego, já depois da meia-noite, as novas “soberanas” seguiram para o centro da cidade, onde, em frente ao histórico edifício de Turismo de Mendoza, acenaram e tiveram seu primeiro contato com o público, que aguardava animado em meio ao calor seco da madrugada. Ambas usavam pesados mantos e coroas de ouro.

Pedido de casamento

Camila Morales e Matías Aguirre no palco do teatro grego após o “sim” / Marcelo Alvarez

Devido à sua importância para o povo mendocino, a festa da vindima também é palco para surpresas. Antes do show teatral, em frente a uma plateia de mais de 20 mil pessoas no teatro grego, Matías Aguirre ajoelhou-se de frente para Camila Sol Morales e escutou o “sim” para seu pedido de casamento.

As reações da plateia foram instantâneas. Mas por que escolher essa ocasião para um pedido tão especial?

“Porque o teatro é onde a Camila saiu como vice-rainha da vindima em 2015. É um lugar muito mágico para ela e a vindima a deixa muito feliz. Então não havia lugar melhor do que aqui”, revelou o jovem à reportagem.

As raízes

Assim como no palco, a admiração pela vindima e pelos frutos que tanto geram rendimento a Mendoza se arrasta, na verdade, há mais de quatro séculos.

Há registros de comemorações de colheita que remontam aos afrodescendentes do século 17, creditados como cofundadores da viticultura americana, que festejavam com ritmos  de candombe e fandango.

Segundo notas do historiador Pablo Lacoste, a passagem da sociedade artesanal para a industrial deu a Mendoza novos horizontes, como a introdução de barris de carvalho e meios de transporte levados pelos europeus.

Em 1909, cerca de 10 mil mendocinos se reuniram em torno de uma cerimônia que celebrava a vinha e o vinho. Já em abril de 1913, um desfile de ceifeiras e carros alegóricos percorreu a cidade e várias zonas de vinhas e vinícolas.

Foi em 1936, então, que um decreto provincial institucionalizou a primeira Festa da Vindima, que reuniu mais de 25 mil pessoas e consagrou a primeira rainha da celebração – a festividade atingiu seu formato atual, com uma agenda cheia na semana do ato central, ao longo dos últimos 50 anos.

“A festa deste ano foi um canto à vida, à esperança, à resiliência. E acreditamos sempre que a vindima não acaba com ela, voltamos a nascer em cada vindima”, finaliza Nora Vicario, a Ministra do Turismo e Cultura de Mendoza.


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