Por que trem real do Reino Unido encerrará as atividades após 180 anos
O atual trem real britânico, com sua pintura vinho escura característica, deverá ser aposentado até março de 2027

No começo da década de 1840, a rainha Vitória entrou para a história ao se tornar a primeira monarca britânica a viajar de trem em vagões exclusivos — os famosos salões reais. Passados mais de 180 anos, o rei Charles III parece pronto para encerrar essa tradição centenária.
O atual trem real britânico, com sua pintura vinho escura característica, deverá ser aposentado até março de 2027, segundo o mais recente relatório financeiro da Casa Real, que quer garantir o “melhor uso do dinheiro público”.
No lugar dele, os membros sêniores da família real devem usar mais helicópteros e trens de linha regular para cumprir compromissos oficiais no Reino Unido e viajar entre suas residências na Inglaterra e na Escócia.
James Chalmers, que ocupa o antigo cargo de Keeper of the Privy Purse — responsável pelas finanças reais — reconheceu que será “uma despedida carregada de afeto”, mas ressaltou: “Para avançar, não podemos ficar presos ao passado”. Ele destacou que “o trem real, é claro, faz parte da vida nacional há muitas décadas, sendo querido e cuidado por todos que se envolveram com ele”.
Em Wolverton, em Buckinghamshire — conhecida como a primeira cidade ferroviária do mundo —, o fim do trem real será sentido de forma ainda mais profunda. Desde 1842, é lá que esses vagões históricos são abrigados e mantidos com esmero.
“Todo mundo em Wolverton conhece alguém que já trabalhou no trem real — e se orgulha muito disso”, diz Philip Marsh, gerente ferroviário, historiador e autor de "The Full Works", livro que conta a história da cidade e sua relação com o trem real.
Para Andrea Rossi, presidente da DB Cargo UK — empresa que gerencia o trem em nome do governo britânico há três décadas —, é uma perda sentida além dos trilhos: “É uma notícia muito triste, não só para nós da DB Cargo UK, mas para toda a comunidade ferroviária. Sempre há um ar solene quando o trem real está circulando. Nossos maquinistas sentem um orgulho enorme de conduzir aquele que talvez seja o trem mais emblemático do Reino Unido, um pedaço vivo do nosso patrimônio”.
Apesar de toda a aura de glamour que se associa aos vagões reais do século XIX — forrados de veludo, decorados com ouro —, o trem atual é surpreendentemente simples por dentro, mais parecido com um hotel executivo dos anos 1970 do que com um palácio sobre trilhos. Por dentro, tudo está datado. Ainda oferece segurança e conforto em viagens oficiais, mas tem sido usado cada vez menos.
Na década de 1990, já se cogitava aposentá-lo, mas ele ganhou sobrevida nos jubileus de Ouro e Diamante da rainha Elizabeth II, quando percorreu o país atraindo multidões. Em dezembro de 2020, foi usado pelo então duque e duquesa de Cambridge — William e Kate, hoje príncipes de Gales — numa viagem de 2 mil quilômetros pelo Reino Unido para agradecer pessoalmente aos profissionais essenciais durante a pandemia.
Entre vapor e cerimônia
Nos últimos 20 anos, o trem real ainda foi puxado por locomotivas a vapor icônicas, como a lendária Flying Scotsman e a Duchess of Sutherland, adicionando um charme nostálgico às viagens. Em setembro de 2022, esperava-se que o trem transportasse o caixão da rainha de Edimburgo a Londres, mas isso não ocorreu por questões de segurança.
Construído na década de 1970, o trem atual já mostra sinais claros de idade. Reformá-lo para os padrões atuais custaria dezenas de milhões de dólares. Mandar construir novos vagões sob medida sairia ainda mais caro — especialmente quando já houve um aumento de verba pública para cobrir a reforma de 500 milhões de dólares do Palácio de Buckingham.
Muita gente se diz surpresa e até desapontada com a decisão de Charles, que sempre defendeu causas ambientais, de abrir mão do trem em favor de opções menos sustentáveis, como helicópteros. O anúncio, aliás, veio a poucas semanas de o Reino Unido celebrar os 200 anos do transporte ferroviário, o que acendeu críticas.
Mas os números falam por si: em 2024-25, o trem real foi usado apenas duas vezes, a um custo superior a US$ 105 mil (o equivalente a R$ 567,8 mil). No mesmo período, foram 55 voos fretados privados (quase US$ 819 mil, cerca de R$ 4,4 milhões), 141 viagens de helicóptero (cada uma custando em média US$ 4.600, ou seja, R$ 24,8 mil) e passagens aéreas comerciais somando US$ 172 mil (R$ 930,2 mil).
Só no ano passado, as viagens da família real custaram US$ 6,4 milhões de dólares (R$ 34,6 milhões) — um aumento de mais de 680 mil (R$ 3,6 milhões) em relação ao ano anterior.
Um ciclo que se fecha
Os britânicos não são os únicos a dar adeus a seus trens reais. Nos últimos 25 anos, Japão, Suécia e Holanda também aposentaram os seus. Só Dinamarca e Noruega ainda mantêm vagões reais, mas raramente os usam.
A primeira carruagem feita especialmente para um monarca britânico surgiu em 1842, fabricada em Wolverton para a rainha Adelaide, viúva de William IV. Por 25 anos, a rainha Vitória viajou em vagões adaptados, até que, em 1869, ganhou um modelo sob medida. A partir daí, as companhias ferroviárias disputavam quem oferecia a carruagem mais luxuosa para a família real, que viajava pelo país como parte de seus deveres.
Em 1897, no Jubileu de Diamante de Vitória, a Great Western Railway entregou um trem completo de seis vagões. Ao longo do tempo, os trens reais introduziram inovações como banheiros a bordo, iluminação elétrica, rádios, telefones, banheiras, quartos, ar-condicionado e mobiliário de luxo — tecnologias que depois se espalharam pelos trens comuns, assim como a Fórmula 1 influencia os carros de rua.
Após a Segunda Guerra Mundial, a British Railways herdou uma frota robusta de vagões reais, alguns blindados, usados até o Jubileu de Prata de Elizabeth II em 1977, quando o trem atual foi montado.
O trem real deve fazer uma última viagem de despedida pelo país antes da aposentadoria definitiva em 2027, dando aos fãs de ferrovias e à monarquia uma chance de se despedirem. Seu destino final ainda é incerto, mas a maioria dos vagões históricos sobreviveu ao tempo e está preservada em museus, como o National Railway Museum em York.
“Eu não gostaria de vê-los virarem sucata”, finaliza Marsh. “Seria lindo vê-los expostos num museu, seja no NRM ou até num novo museu na própria Wolverton, onde tudo começou.”
