Fernanda Magnotta
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Fernanda Magnotta

PhD especializada em Estados Unidos. Professora da FAAP, pesquisadora do CEBRI e do Wilson Center. Referência brasileira na área de Relações Internacionais

Análise: Tarifaço corrói relações entre Brasil e EUA e alerta para o mundo

As recentes sanções de Trump contra o Brasil sinalizam uma erosão preocupante dos princípios de soberania, legalidade e previsibilidade nas relações internacionais

Donald Trump
Donald Trump na Casa Branca  • REUTERS/Nathan Howard
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As recentes medidas adotadas pelo governo Donald Trump contra o Brasil - a imposição de uma tarifa punitiva de 50% sobre produtos brasileiros, o cancelamento de vistos de ministros do Supremo Tribunal Federal e o apoio explícito ao ex-presidente Jair Bolsonaro - extrapolam em muito a esfera de um desentendimento bilateral.

Trata-se da consolidação de um padrão perigoso: a instrumentalização aberta da política externa norte-americana para fins domésticos e interesses pessoais, em flagrante desrespeito aos fundamentos normativos da ordem internacional liberal.

O aspecto mais alarmante desse episódio é o rompimento deliberado com o princípio da não intervenção, pilar do sistema westfaliano e cláusula pétrea do direito internacional.

Trump não escondeu as motivações de sua decisão: ao justificar a tarifa de 50%, alegou explicitamente insatisfação com a condução dos processos judiciais envolvendo Bolsonaro, classificando-os como uma “caça às bruxas”.

Ou seja, não se trata de uma retaliação comercial baseada em dumping ou desequilíbrios estruturais, mas de uma tentativa direta de interferência em decisões soberanas tomadas no âmbito do Estado de Direito brasileiro.

 

Essa lógica foi aprofundada com o anúncio, pelo Secretário de Estado Marco Rubio, do cancelamento de vistos de magistrados brasileiros, sob a alegação de que eles estariam promovendo censura contra “direitos constitucionalmente protegidos nos Estados Unidos”.

A inversão normativa é chocante: decisões tomadas por um Supremo Tribunal dentro dos marcos legais e constitucionais do Brasil passam a ser interpretadas, extra territorialmente, como violações a direitos de cidadãos norte-americanos - abrindo espaço para sanções unilaterais e seletivas, sem qualquer mediação multilateral.

A gravidade desse precedente ultrapassa o caso brasileiro. Se naturalizarmos a ideia de que um país pode aplicar sanções econômicas e diplomáticas com base em discordâncias sobre decisões judiciais internas de outro Estado soberano, abrimos as portas para a erosão definitiva do princípio da soberania.

Trata-se de um movimento que subverte a lógica da negociação e do direito em favor de um modelo pautado pela coerção, onde o poder se sobrepõe à norma, e onde a legalidade internacional se torna condicional à aprovação das potências.

Lógica transacional

Outro elemento que merece atenção é o uso da chantagem como substituto da diplomacia. O governo norte-americano não apresenta propostas, não estabelece diálogo, não busca soluções - apenas impõe.

Trata-se de uma lógica transacional levada ao extremo: qualquer resposta brasileira que fuja das expectativas de Washington é interpretada como provocação e punida com novas ameaças.

O resultado é a corrosão da confiança mútua e a substituição da negociação institucionalizada por ciclos sucessivos de punição.

O caráter arbitrário da medida fica ainda mais evidente quando analisamos seus fundamentos econômicos ou a ausência deles. Os Estados Unidos mantêm superávit na balança comercial com o Brasil, e não há evidências de práticas desleais que justifiquem tal escalada.

Isso reforça o diagnóstico de que estamos diante de uma sanção de natureza política, descolada de qualquer racionalidade econômica ou interesse estratégico de longo prazo. É a política comercial sendo instrumentalizada para satisfazer agendas domésticas e interesses privados - uma prática que compromete a previsibilidade e legitimidade do próprio sistema multilateral de comércio.

Mais preocupante ainda é a forma como interesses particulares conseguem capturar a política externa de uma superpotência. O caso envolve figuras como Eduardo Bolsonaro e influenciadores brasileiros abrigados nos EUA, que vêm promovendo uma narrativa de perseguição contra si mesmos para justificar ações contra instituições brasileiras.

A ação judicial movida pela plataforma Rumble e pela Truth Social, associada diretamente a Trump, contra o ministro Alexandre de Moraes na Flórida não é coincidência: há uma intersecção clara entre o interesse empresarial de Trump, a retórica de perseguição e a decisão de impor sanções contra o Brasil.

Esse episódio, no entanto, não é apenas uma crise bilateral: é também um movimento estratégico com alcance mais amplo.

Cúpula dos Brics

O Brasil tem desempenhado papel central na revitalização dos Brics, inclusive sediando a cúpula de 2025 e articulando iniciativas voltadas à desdolarização, ao financiamento climático e à criação de alternativas à ordem econômica ocidental.

Trump tem citado explicitamente os Brics como ameaça ao dólar e ao sistema que sustenta o poder dos EUA. Ao punir o Brasil, envia um sinal dissuasório aos demais países do bloco, sobretudo àqueles que cogitam adotar caminhos autônomos frente à hegemonia norte-americana.

Estamos, portanto, diante da consolidação de um novo paradigma de política externa, marcado pela normalização do excepcionalismo e pela erosão dos freios institucionais.

Sanções unilaterais baseadas em afinidades ideológicas, retaliações contra decisões judiciais soberanas, chantagem como substituto da diplomacia e captura da política externa por interesses empresariais e familiares: tudo isso vem sendo tratado como aceitável, quase trivial, por parte significativa da opinião pública e da elite política dos Estados Unidos.

As políticas de Trump contra o Brasil não devem ser lidas como incidentes isolados, mas como sintomas de uma transformação mais profunda e inquietante. Quando o poder é exercido à revelia da norma, quando a soberania se torna negociável, e quando a ordem internacional passa a tolerar abertamente a coerção como instrumento ordinário de política, estamos diante não apenas da degradação de uma relação bilateral, mas da corrosão silenciosa dos pilares que sustentaram décadas de estabilidade e previsibilidade nas relações internacionais.