Livro que debate o racismo no Brasil tem aumento de 1.500% de vendas
Especialistas e o autor da "Trilogia do confinamento", obra que inspirou o filme "Medida Provisória", falam sobre a demanda crescente da população negra por temas que retratam a própria história
O livro “Trilogia do confinamento”, que reúne três obras, “Namíbia, não!”, “Embarque imediato” e “O campo de batalha”, de Aldri Anunciação, e que inspirou o filme “Medida Provisória”, teve um aumento de vendas de aproximadamente 1.500% nos últimos 12 meses.
Mas o longa-metragem lançado em abril deste ano e que marcou a estreia de Lázaro Ramos na direção, não foi o único motivo do aumento do interesse pelos textos desse escritor e roteirista baiano.
“Atualmente, há uma procura muito grande na literatura pelas questões raciais, em particular as que debatem o racismo no Brasil”, afirma à CNN, Sergio Kon, editor da Perspectiva, companhia responsável pela publicação do livro.
“Esse tema ganhou enorme visibilidade a partir do assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, e do movimento ‘Black Lives Matter’ (Vidas Negras Importam). Mas, claro, que a procura intensificou-se ainda mais com a estreia de ‘Medida Provisória'”, diz.
O texto de “Namíbia, não!” foi a responsável por inspirar o filme, que levou meio milhão de espectadores aos cinemas. A história gira em torno de dois personagens, André e Antônio, que passam o dia trancados no apartamento para fugir de uma medida provisória que visa oferecer uma reparação histórica no Brasil, dando-os o direito de irem à uma região africana e sair do país.
Outra personagem principal do longa-metragem é Capitu, interpretada pela atriz Taís Araújo. Ela é uma médica negra que tenta sobreviver pelos bairros do Rio de Janeiro, enquanto foge da polícia para não ser pega pela medida provisória e levada à África. Capitu encontra refúgio no ‘afro bunker’, local onde os negros que não concordam com a política de reparação se encontram para resistir ao estado.
Representação
O presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, aponta também que a alta procura pela obra vem de uma demanda crescente da população negra por temas que retratam a própria história.
“Os negros tiveram suas referências na literatura e no cinema minorizadas. Então, é uma demanda latente ter representações por um outro ponto de vista”, afirma.
De acordo com uma pesquisa do Grupo de Estudos de Literatura Contemporânea da Universidade de Brasília, entre 1990 e 2014, “as cinco principais ocupações dos personagens negros nos livros eram bandido, empregado doméstico, escravo, profissional do sexo e dona de casa”.
O autor Aldri Anunciação acredita que o imbróglio temático do livro é que gerou interesse pela obra. “O enredo gira em torno de pessoas pretas que necessitam de proteção e confinamento”.
Quando criança, ele conta ter tido a necessidade de “sobreviver” quanto às questões raciais, e que viveu histórias semelhantes às dos personagens de suas obras.
Anunciação tem 45 anos e acredita que esse não é um aspecto que ficou no passado.
De acordo com dados da Secretaria de Justiça e Cidadania do estado de São Paulo, já foram registradas mais denúncias de crimes de racismo e injúria racial entre janeiro e abril de 2022 do que em todo o ano de 2021.
Nos primeiros quatro meses deste ano, foram 174 casos nas cidades paulistas, contra 155 durante todo o ano anterior.
Para Anunciação, a importância da obra é que ela “talvez tenha sido uma das primeiras a tratar o racismo de uma forma distópica”.
O livro foi também uma peça de teatro dirigida por Lázaro Ramos, lançada em 2011 e que contou com mais de 1 milhão de pessoas na plateia durante os oito anos que esteve em cartaz.
O escritor comenta ainda que o público, tanto do livro quanto do filme e da peça, estavam interessados em temas “significativos para fazer com que a sociedade seja mais humana”.
Negritude na literatura
Uma pesquisa do grupo de estudos de literatura contemporânea da Universidade de Brasília trouxe uma radiografia racial e de gênero do mercado editorial brasileiro.
Depois de analisar 258 romances publicados por três grandes editoras, entre os anos de 1990 e 2004, o estudo revelou que cerca de 94% dos autores publicados eram brancos.
A pesquisa ainda mostrou que em 56% das obras não há nenhuma personagem não branca, e que apenas dois livros sozinhos respondiam por cerca de 20% das personagens negras.